sábado, 18 de outubro de 2008

Metrópole

Segunda Feira:

O sol brilhava do lado de fora do prédio cimentado,simples em sua decoração arquitetônica, uma mescla em dégradé do cinza pálido que sempre colorira a temida cidade de São Paulo.

Mormaço forte e escaldão, pastava a fumaça vomitada dos escapamentos dos carros e jogava a miscelânea nos corpos desprotegidos que vagavam, levianamente ou não, pelas calçadas esburacadas da metrópole.

Igor, no momento, estava protegido. Sentado na cadeira de madeira lascada na sala 37 do prédio cimentado, respirava apenas o ar gelado transeunte, nem se importando se embutido nele houvesse a mais pura essência da titica daqueles ratos voadores chamados de pombas. Ou aspirava as reles fezes ou se empastava com o ar da cidade, do lado de fora.

Já era meio dia. Talvez fosse a desculpa que estivesse esperando cair do teto da sala para levantar-se e voltar para casa; entretanto havia combinado consigo mesmo, ainda sabendo que raramente cumpria suas autopromessas, que se empenharia mais para passar no vestibular daquele ano. E, conforme havia informado para seus pais, não tinha hora para voltar. E que não o esperassem para jantar.

- Saco de aula – resmungou consigo mesmo.

Seu estômago roncava. Não entendia nada de química, mas tinha certeza que sua necessidade fisiológica seria um prato cheio para o professor explicar ao restante da classe todas as intermináveis equações que ocorriam no ser humano quando este sente fome.

Levantou-se da cadeira e passou apertado pelo restante da fileira, praticamente colada com a da frente. Foi até o banheiro.

Olhou-se no espelho.Diria que estaria branco de fome, caso fosse caucasiano. Todavia, sua pele mulata-seis-e-meia-da-tarde era refletida como um bege claro. Ajeitou os cabelos negros e encrespados por desencargo de consciência, pois sabia que eles não costumavam se endireitar exatamente como desejava. Cabelo duro fica do jeito que cresce.

Jogou água no rosto, examinou os dentes brancos e tirou da ponta do nariz adunco um fiapo de tecido,o que fez-se questionar durante a restante meia hora da aula de química como fora parar lá.

A sineta tocou. Acabou a aula do cursinho na segunda feira. Agora a missão seria almoçar e passar o restante do dia estudando para que pudesse ingressar na faculdade de Jornalismo no final do ano.

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Igor tinha apenas almoçado, mesmo não considerando muito bem um cheeseburger e um refrigerante como um almoço, mas ao julgar pelo horário do dia e pela quantidade de dinheiro que havia na carteira, sim, aquilo fora uma refeição bem vinda.

Mas naquela hora, seu estômago roncava ferozmente; seus olhos quentes pesavam e sua cabeça, já vazia, flutuava em algum lugar distante demais da Sala de Estudos aonde estava.

Chega de Getúlio Vargas. Chega de geopolítica. Ao inferno Camões e seus amigos marinheiros desbravadores. Olhou no relógio mais uma vez: nove e meia da noite.

Nove e meia da noite e a única coisa que havia comido fora um cheeseburger, um refrigerante e pedaços de duas barras de chocolate. Não há quem agüente. Juntou seu material, jogou-o dentro da mochila e partiu em disparada para bem longe daquele prédio. Não havia lugar em que mais desejava ficar senão sua casa.

O passar massante da tarde fora anestesiado, em certas partes, pela companhia que encontrara. Encontrara era um termo que Igor decidiu usar para enganar a si próprio, pois seguira Jéssica da lanchonete até a sala a qual ela escolhera.

Decidiu sentar-se na mesma mesa que ela ao acaso também, do mesmo jeito que fingira não entender direito o que fora a Polaquinha e em qual parte da história entrava a Ilha dos Prazeres. Ouvir o ressoar da voz doce de Jéssica era, de fato, um motivo a mais para ficar até de noite estudando.

Os dois estudaram no mesmo colégio, apesar de nunca terem ficado na mesma classe. Ambos tiveram insucesso no vestibular e Igor decidiu justamente o mesmo curso pré-vestibular que ela ao saber, por intermédio das fofocas que ouvia dos ex-colegas de classe, que Jéssica optara pelo cursinho o qual estudava agora, mesmo sendo fora de mão e muito mais caro que os mais próximos à sua casa.

Ele sabia que o sonho dela era estudar Publicidade, sabia que era de Virgem e entendia de mapa astral e esoterismo, que tinham a mesma idade, que ela amava teatro, gostava de MPB e ouvia rock nacional, chocólotra compulsiva e apaixonada, Igor nunca soube muito bem o porquê, por esquilos.

Ele sabia que Jéssica não fazia idéia que seu nome era Igor, que não tinha um estilo musical muito bem definido, que fosse de Aquário e até achava interessante astrologia mas não via muita lógica em como a posição do sol em relação à Terra definiria a personalidade de alguém, tudo isso equacionado com a data e hora de nascimento de uma pessoa, que também gostava de teatro e que evitava comer chocolates para não que surgissem espinhas em seu rosto. Mas Igor não se importava. Tudo a seu tempo.

Desconsiderando a grande probabilidade de acnes na face, Igor comprou duas barras de chocolate e abriu a primeira. Abocanhou-a, deixando-a amostra de Jéssica, que escrevia compenetrada até ver o tablete com uma ponta faltando.

- Quer..? – ofereceu Igor, tentando simbolizar em seu semblante que sua pergunta fora tão ocasional como estar sentado de frente para ela.

- Não, obrigada... – respondeu, simpática, rindo e mostrando seus dentes perfeitos. Seu sorriso salientou a sensual micro-pinta que marcava sua pele sedosa, próxima ao lábio superior no canto direito. Seu pequeno nariz pontudo também era marcado com uma pinta em seu bico e seu cabelo castanho-claro esvoaçava a cada sopro do ar condicionado.

- Pode pegar, se quiser... – insistiu.

- Ta bom, vai... – disse tímida e ainda sorridente, arrancando um pedaço da barra e o abocanhando de uma vez, fechando os olhos e respirando fundo. Ela realmente gostava de chocolates.

- Você é a Jéssica, não é? – perguntou, deixando de lado sua tarefa.

- Sim, sou eu – respondeu, em um quê espantado.

- Jéssica Albuquerque.

- Isso... – ela respondeu, franzindo a testa – A gente se conhece da onde?

- Estudamos juntos – emendou – Não juntos na mesma classe, mas no mesmo colégio – prosseguiu ao ver que seu rosto expelia um enorme ponto de interrogação – Mesma série...

- Desculpa, mas eu não me lembro de você... – disse sem graça.

- Sou o Igor.

- Ah, o Igor! Igor Brandão?

- Não... Portela...que nem a escola de samba.

- Ahhh...prazer – ela esticou a mão e os dois se cumprimentaram.

- Então...você quer prestar o que mesmo? – Igor perguntou, puxando assunto mesmo já sabendo a resposta. Deixou com que ela falasse quase tudo aquilo que ele já sabia pois, mesmo sabendo que ela gostava de música brasileira,desconhecia sua adoração por Chico Buarque, João Bosco, Elis Regina, Renato Russo e Cazuza. E sua paixão por Vinicius de Moraes.

- Ah, música velha então?

- Música boa – respondeu, guardando a caneta no estojo e com a boca cheia de chocolate da segunda barra.

- Ah, sim...claro...foi o que eu quis dizer...

A boca de Igor esvaziou-se da frase que emitia, como se seu último som morresse ao vento. Viu, por trás de Jéssica, o surgimento da figura loura e espadaúda, olhos verdes e boca fina, emergir da larga porta de entrada da Sala de Estudos.

Celso Guimarães trajava sua tradicional camisa colada, estampada de listras horizontais que se revezavam em amarelo, branco e azul e seu cabelo louro e fino colava-se na cabeça em virtude do boné apertado que vestia. Ele aproximou-se de Jéssica, cutucou sua orelha. A garota inclinou sua cabeça, assustada com a repentina entrada de dedo em seu ouvido e, ao notar que era Celso o dono daquele indicador cumprido, sorriu, deixando Igor inerte.

- Oi coelhinha – disse Celso. Igor também sabia que era assim, com esse apelido ridículo, que Jéssica era chamada por seu namorado desde pouco tempo depois da concretização do namoro dos dois, ainda no colégio.

- Oi, amor – ela disse, pouco antes de beijarem-se. Igor assistia – Então... – disse Jéssica, após desgrudar seus lábios da boca de Celso – esse é o Igor.

- Opa, prazer! – disse, erguendo a mão.

- Oi... – respondeu com vagueza.

Jéssica ficou apenas mais alguns segundos sentada. Não demorou muito para Celso e ela irem embora.

Igor os assistiu partir após despedirem-se e tentou voltar suas atenções aos estudos, coisa que não aconteceu pois, desde o momento em que Jéssica sumira de vista com seu namorado, todas as frases lidas de sua apostila perdiam o combate travado em sua mente, no quesito prioridade, com sua paixão platônica. Jéssica Albuquerque era tão ou mais importante que Getúlio Vargas.

Eram nove e quarenta e três quando se sentou no banco do ponto de ônibus, não muito longe do curso, após pisar em um mendigo. Ele nao o tinha visto.

Os carros corriam na avenida sem pudor, as luzes vermelhas, amarelas e azuis dos veículos cortavam a cidade escura, pipocando com freqüência em seus olhos, tão frenéticas quanto o concerto de buzinas e freadas produzidas pelos protagonistas das ruas de São Paulo.

Ao seu lado, uma senhora com uma sacola em cada braço. Do outro, um senhor negro com uma bíblia em punho e, ao lado dele, uma garota estudante.

Olhou o horário novamente. O ônibus estava demorando.

Viu um rapaz magricela, cabelos espetados e olhos azuis, aproximar-se do ponto. Ele esfregava as palmas da mão, tremelicava as pernas e seu rosto virava de quando em quando para os lados. Deveria estar com frio. Igor estava.

O garoto passou a fitar o ponto, andando de um lado ao outro. Igor evitava olhar para ele, mas seus olhos insistiam em desobedecer-lhe, fitando-o de esguelha.

- Oi, tem horas? – perguntou o garoto.

- Dez pras dez – respondeu de sobressalto.

O clarão emergiu de longe e Igor reconheceu como sendo o farol alto do ônibus. Levantou-se.

O ônibus parou de frente ao ponto. As pessoas próximas, já de pé, formaram uma fila. Igor permaneceu entre o senhor da bíblia e a senhora das sacolas. O rapaz magricela foi para o fim.

Igor subiu as escadas, pagou a passagem ao cobrador, andou no corredor do veículo e sentou-se ao lado de um homem gorducho, coberto por um casaco empacotado.

Tinham poucos passageiros, o que o fez estranhar. Além de seu vizinho de assento, um homem sentado ao fundo, um casal de amigos e uma mulher pouco à frente.

Colocou a mochila sobre as pernas, apoiou a cabeça no balaústre, fechou os olhos e suspirou fundo.

- Ahhh.... – gemeu com os olhos semi-serrados. Avistou o rapaz magricela perto da catraca, suas mãos ainda sendo esfregadas uma contra a outra. Ao seu lado, um homem negro, beiças inchadas e cabelo curto encarrapitado, cochichava em seu ouvido. O rapaz magricela acenava com a cabeça, seus olhos azuis fixos em alguma coisa pregada no chão.

Igor virou o rosto e viu o outro lado da calçada locomover-se. O ônibus já estava saindo. Reparou em uma mulher de seios fartos, parada na esquina.

Um grito cortou sua capacidade de apreciar os peitos da mulher com tranqüilidade. Ele assustou-se abruptamente, o coração palpitando acelerado, vidrando seus olhos no homem negro que sustia uma arma e gritara avisando que ele estava lá para assaltá-los.

- Eu quero todo mundo quieto! – gritava, apontando a arma para cada passageiro petrificado nos assentos do veículo.

Seu coração acelerado descompassava em sua garganta. Seus braços tremiam e seu corpo suava. O homem agasalhado ao seu lado suspirara alto e agarrara o assento com virilidade.

- Ele vai passar recolhendo o que vocês têm! É só isso! Não to afim de matar ninguém hoje!

O rapaz magricela puxou a carteira da mulher sentada à frente de Igor que tremia . O homem negro andava pelo corredor apontando sua arma para todos os presentes enquanto emitia ameaças.

- ...não quero saber de desculpas, é pra passar tudo senão eu volto atrás e mato mesmo...!

- Vai, você! – disse rapaz ao chegar perto de Igor – passa.

- Eu não tenho nada... – disse, erguendo as mãos para cima.

- O relógio, passa o relógio!

Tremendo, Igor desafivelou o relógio do pulso e entregou ao garoto magricela. Reparou nos olhos azuis trêmulos do rapaz. Ele agarrou o relógio jogou-o na sacola.

- Vai, mais!

- Não tenho....

- Você aí, velho, vai pegando a carteira...

-...é pra passar o que tem, não to de brincadeira...!

-Senhor, tenha piedade de nós! – rezava em voz alta o senhor da bíblia.

- Cala a boca!

Igor começou a sentir-se zonzo. O rapaz magricela parecia mais nervoso que ele, o homem agasalhado ofegava com violência e tossia com força, colocando a mão no peito diversas vezes. O casal de amigos encolheu-se num canto, o homem amparando a amiga que chorava desconcertada. O senhor da bíblia prosseguia com suas orações, enquanto o assaltante retribuía gritando, arma apontada para ele.

- Velho do caralho, deus não está aqui para te salvar!

- Pecador!

O rapaz magricela apanhou os pertences do homem agasalhado e ainda o celular de Igor, rumou para o assento do casal que se amparava.

- Passa! – gritou.

- A gente não tem nada...

- ...passa senão eu mato você e sua namorada...!

- Ó Senhor, livrai-nos do mal!

- Vai!

- Livrai-nos, Senhor, livrai-nos de todo mal...

- Cala a boca!

Igor ouviu o assaltante engatilhar sua arma, sentindo sua alma esvair-se do corpo junto com seu coração que saía pela boca. Um gelo cobriu seu corpo, seus pêlos eriçaram e a tontura o atingia com mais força que outrora.

Ouviu um rebuliço repentino e virou-se para trás, instintivamente. O homem, sentado ao fundo, levantou-se abrupto com uma pistola em mão e um distintivo em outra. Igor notou que ele era policial.

- Acabou, chega! – disse o policial – Larga essa arma senão quem vai acertar as contas com deus será você!

O assaltante fora pego de surpresa e ficou sem reação. Por um momento, Igor reparou, o bandido ameaçou erguer os braços mas relutou e continuou firme, apontando a arma para o senhor da bíblia.

- Atira em mim, coxinha, e quem morre é o velho – respondeu frio.

O policial continuou parado, mirando no assaltante. O rapaz magricela ficou estático. A senhora das sacolas, de olhos fechados, rezava. A garota estudante chorava em silêncio.

O ônibus começou a perder velocidade, fazendo com que o assaltante gritasse para que o motorista prosseguisse.

- O sinal ta fechado! – gritou o cobrador.

- Foda-se!

Igor espiou pela janela o disco vermelho do semáforo aproximar-se e pessoas tomando a iniciativa para atravessar a rua. O motorista buzinou com força, ecoando o som estridente da buzina, mesclado com os gritos dos pedestres, em seus ouvidos, mas não chegou a ultrapassar o sinal. Freou com força.

O assaltante, desprevenido, voou em função da inércia, disparando pelo reflexo mais que automático o gatilho do revólver.

Igor acobertou a cabeça instantaneamente, engasgando-se com um grito que não chegou a sair. Ouviu mais gritos agudos e atiçados da mulher e um gemido forte de solavanco que julgou ser do velho da bíblia.

Não demorou mais que um segundo após o primeiro disparo para que Igor ouvisse o seguinte. A gritaria chorosa se intensificou.

Encolhido em seu banco, Igor viu a arma que julgou ser do assaltante deslizar pelo corredor de alumínio do ônibus. Foi o último som que ouviu.

Silêncio. Olhou para seu lado esquerdo e viu o homem agasalhado encolhido no vão entre o par de assentos e outro. Ofegava.

Virou os olhos mais para cima e viu o cobrador levantar-se. Também havia se encolhido.

Igor levantou devagar. Trêmulo, apoiou as mãos no balaústre para não cair ao chão. Não conseguiu e bateu os joelhos no piso.

Viu, jogado como um saco velho cujo dono resolvera abandonar ao notar que não lhe seria mais útil, o assaltante estirado, morto, no chão.

O homem do casal amparava a mulher que, vermelha, soluçava. Ambos permaneciam agachados.

O garoto magricela, tremendo, encostou-se num banco, as mãos erguidas para o céu.

Igor conseguiu-se levantar. Atônito, reconheceu o policial erguer-se, com a arma apontada para o rapaz magricela, desanimado, mãos e roupa manchadas de sangue. Também jogado ao chão, o senhor da bíblia jazia sem vida, morto com o livro sagrado na mão.

Que deus o tenha, pensou. Havia ainda a terça feira.