terça-feira, 13 de abril de 2010

Velório

Às memórias de Alcides sobravam sorrisos, e quem o conheceu em vida não se lembra do velho sem que esboce uma única bufada de alegria. Era uma grande pessoa. Foi um grande homem.
Seu velório estava cheio.
A capela do cemitério da Consolação estava lotada, repleta de ávidos e saudosos amigos, séquitos seguidores de suas palavras e eternos aprendizes daquele mestre na arte de aprender com a vida.
- Ele viverá na morte! – gritou um saudosista, companheiro das intermináveis partidas de dominó na pracinha do bairro da Aclimação.
- Alcides Ferreira da Cunha Brandão! Para sempre comigo! – continuou outro colega com quem Alcides passava horas sentado no banco do Parque jogando migalhas de pão e grãos de milho às pombas.
Ele estava lá. Quietinho, deitado em sua nova cama cheirosa, florida, forrada e macia, descansando sereno. Ao seu lado, os familiares condolentes e cabisbaixos.
Arlindo, seu filho, era o mais procurado, ao lado de sua esposa que carregava Tobias no colo, que devorava uma barra de chocolate e vidrava o avô achando graça no nos algodões enfiados em seu nariz. Suas mãos eram apertadas pela fila dos intermináveis admiradores do finado pacato veterinário aposentado.
- Seu pai foi a melhor pessoa que conheci na vida – ouvia – Você foi abençoado por Deus.
- Obrigado – respondeu o filho, que logo se silenciou.
Entre o burburinho da multidão que se apertava no espaço limitado, ele ouviu.
Um barulho falho e contínuo. Era como se saísse a força, tremido, balançante. A capela aquietou.
As pessoas fitavam umas as outras, espantadas. O barulho seguia contínuo, tamborilante, ricocheteando entre paredes soltas que proporcionavam um som meloso e abafado, sumindo gradativamente.
Ninguém ousou se mexer. Estavam todos atônitos e em silêncio, boquiabertos.
O som se repetiu. Seco, rasgado, curto e certeiro.
Os presentes só se moveram quando o cheiro da devassidão tomou conta, impiedosamente, da sala que agora jazia abafada; levavam as mãos às narinas e enxugavam os olhos que lacrimejaram.
- Ué, o morto peidou?
- Larga a mão de ser besta, morto não peida! – retrucou uma senhora, Dona Edelvira, batendo com sua bolsa na cabeça do falante – Respeite o seu Alcides.
- Arlindo! – ralhou a esposa, com a mão no nariz.
- Não fui eu! – retrucou – Deve ter sido o Tobias, eu falei pra você não dar chocolate pra ele de estômago vazio, não é primeira vez que ele faz isso!
- É, tem razão, esqueci – disse a mãe, esforçando-se para retirar a barra de chocolate do menino desentendido.
Sem seu lanche, o garoto reparou nos algodões que se moveram e sorriu com a leve mexida minguante para cima dos lábios do avô, que também riu ao seu lado sem que o neto notasse, ficando duplamente aliviado. Principalmente por descobrir que certos prazeres nem o fim da vida tira.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Pela manhã

Nélio passou a detestar sua música favorita quando resolveu usá-la como despertador de seu telefone celular.
Eram seis e trinta e cinco da manhã de segunda-feira. Os raios de sol que emanavam da janela do sexto andar do edifício Towers Towards, Alameda Jaú, Jardins, batiam em seu rosto sem pedir licença, como visitantes inconvenientes e desagradáveis.
- Bosta de sol – resmungava – Bosta de música – concluía com dor no coração.
Seu banho se estendia por longos e desnecessários minutos e tomava o café sem a mínima pressa – ele não tinha pressa alguma de chegar ao trabalho, ou bosta de trabalho, como costumava resmungar pela manhã – brincava com os pedaços de pão, àquela hora borrachento, jogados em seu prato e amassava os cristais de chocolates não consumidos pelo leite, completamente azedo em sua boca, em sua caneca do Santos.
- Bom dia, filho – dizia sua mãe.
Sua resposta era um grunhido indecifrável, o que já havia se tornado rotineiro: ao invés das frases prontas matinais, respondia uma conjunção desconexa de vogais e consoantes sorteadas a esmo. Acordar de manhã cedo era realmente um saco – ou uma bosta. Para Nélio, era sempre uma bosta.
Subia a Joaquim Eugênio com um óculos de sol jogado à face e a mochila pendida no ombro esquerdo. Com a mão direita carregava o último exemplar da Rolling Stone americana (a brasileira era uma bosta) com o rosto bocudo do Steve Tyler estampado na capa (Why are they mad?) e, aos seus ouvidos, a voz agradavelmente chorosa do Morrissey agonizava, relembrando-o que as coisas muitas vezes poderiam ser infinitamente piores que uma segunda-feira de manhã. Os Smiths até que eram reconfortantes.
- Sweetness, Sweetness I was only joking when I said I´d like to smash every tooth in your head... – cantarolava.
Chegando à Avenida Paulista, virou a direita. A estação Brigadeiro não era longe dali, apenas algumas quadras. Entretanto, sua passada vagarosa cadenciava o ritmo empolgante que sentia dentro de seu coração para mais um longo e tedioso dia de estágio.
Com calma, admirava o emaranhado de carros que riscavam o asfalto liso e disputavam a buzinada mais alta. Via seu reflexo nos prédios envidraçados e indignava-se com seu cabelo que insistia em não abaixar, tropeçando em um mendigo que dormia bêbado na calçada, coberto por um saco de batatas.
Julgou ser xingado, mas não ouviu: estava na porta da estação e já se encontrava frente a frente com a escada rolante.
Ah, que insuportável! Aquela gente, aglomerada, sem educação. Esbarra-esbarra, sovaqueira, o cheiro azedo de suor. Um comboio de pessoas que não terminava, espremidas, entrelaçadas em suas próprias cadeias de problemas, que se roçam e se tocam como íntimos desconhecidos. Nélio sente todos, assim como todos os sentiam: pela pele absorvia o estresse inacabado do macio terno de cetim do advogado engravatado a sua frente, entendia as dores da doméstica espancada pelo marido alcoólatra na noite anterior, a fome do estudante que deixara de tomar café da manhã para queimar seu baseado escondido dos pais que já tinham saído para o trabalho havia muito, os problemas fúteis da garota magra esnobe (To gorda!) e os demônios do pastor que não entendia sequer o sermão mais fácil que pregava.
Na plataforma sentia-se mais livre, mesmo que por pouco tempo. O trem rumo à Sumaré já havia freado e sua porta deslizado para seus cantos correspondentes.Entrou no primeiro vagão por ser, supostamente, o mais vazio – que não estava.
Colocou-se em pé entre as cadeiras ocupadas e as paredes da cabine do maquinista, de frente para as janelas fechadas. Apoiou sua cabeça e fechou os olhos.
- Agora é só esperar... – comentou consigo mesmo.
Seus olhos abriram na mesma instantaneidade com a qual os fechou. Sentiu novamente o toque, agora ombro a ombro. Mas desta vez gostou do que sentiu.Não se preocupou em olhar para os lados, limitando-se apenas em ver de esguelha.
A menina tinha o mesmo tamanho que ele e, provavelmente, a mesma idade. Pele dourada e cabelos negros. Era interessante: não tinha um nariz grande e suas feições eram simplórias, para não dizer delicadas. Parecia ser bonita, pelo menos de perfil...
- Moço...
- Oi? – tratou de responder Nélio, tirando o fone do ouvido.
- Moço... – repetiu.
- Sim... – moço?!
- Tem como você abrir a janela, por favor?
A resposta de Nélio foi gestual, erguendo os ombros e torcendo a boca. Viu-se fazendo o favor, abrindo-a.
- Obrigada.
- Nada...
Voltou a sua posição original, apoiando a cabeça novamente e fechando os olhos.
O toque se estendeu.
Desta vez, seus braços se tocaram. Sentiu aquela troca de energia que só o transporte público conseguia propor. Suave e morno, o toque era bom. Seus pelos conversavam e se acariciavam como um casal recém formado de adolescentes apaixonados. Nélio não se mexeu.
Abriu os olhos e tentou verificar o rosto da garota pelo espelho. Em vão. Imagem desfocada, enxergava apenas um borrão. A janela aberta dificultava, refratando a fonte daquela sensação verdadeira e serena.
A garota moveu-se. Para mais perto. Ouviu um suspiro, e não era dele. Decidiu mover-se também, colando ainda mais ao seu lado. Suas peles estavam coladas, grudadas. Seus cotovelos dividiam o mesmo espaço de apoio.
Olhou mais uma vez para o espelho. Como será seu rosto? Por que é tão difícil separá-lo do espelho? Por que é tão difícil encontrar aquilo que está justamente ao lado?
Sua cabeça rodopiava. Virar o rosto despretensiosamente? Não parecia uma boa opção, poderia assustá-la. Puxar assunto? Não, melhor não...
- Estação Clinicas.
A garota moveu-se de novo. Esguia, postou-se firme. Era hora de sua partida e a última chance de Nélio descobrir se aquele rosto indecifrável era do jeito que desenhava na cabeça.Pensou em cutucá-la, como se fosse um acidente. Mas ela já tinha andado e saído do vagão.
A janela mostrava apenas suas costas e seu rebolado apressado. Nélio apoiou sorrateiro sua cabeça na parede e suspirou fundo conformando-se, até certo ponto entristecido, de que não havia perdido grande coisa – mentindo a si mesmo, claro. Ele sabia que ninguém perde pouca coisa em uma segunda-feira de manhã.