sábado, 22 de agosto de 2009

A vizinha

Foram poucas vezes, é verdade. Mas já tinha sido o suficiente.

Eram vizinhos. E desde o momento em que ela se mudara para a casa ao lado, o garoto tinha mais que certeza que ali se encontrava o amor de sua vida.

Descobriu rapidamente coisas interessantes: ambos contavam dez, se chamava Mel e, assim como ele, era um tanto solitária.

O garoto não sabia se a vizinha confundia Frederico com Francisco, como a maioria das pessoas. De fato eram nomes diferentes, mas levando em consideração que seu apelido era Fred, o mais plausível a aceitar-se seria a primeira opção. Mas ele não cobraria isso dela. Nem teria como. Afinal, ninguém conhecia Fred melhor que ele mesmo.

O menino era estranho. Um tanto esquisito. Jogava vôlei sozinho contra o muro vizinho e geralmente perdia. Calçava pares diferentes de meias, cortava bife com colher, tomava sorvete com mostarda, seguia formigas com lupa pelo quintal e comia sabonete – gostava do cheiro. Mas tirava boas notas, conformava-se a mãe.

- É mania de gênio – dizia a avó, dona Godofreda – Todos eram esquisitos – completava sempre ao ver a filha irritar-se com o neto ao tentar explicar-lhe, pela vigésima vez na semana, que picanha se espeta com garfo.

Mas Fred não se importava. Que diferença faz o que uma velha com bereba no queixo acha de você? Seu objetivo era um só: ver Mel de perto. Sem muros nem plantas em sua frente, sem precisar se esconder para espioná-la na janela. Ficar frente a frente. Sentir seu cheiro. Tocá-la. Tentar falar com ela. Tentar.

Na primeira vez que Fred se apaixonou, ficara tão nervoso que vomitou ao declarar-se:

- Eu te am..... – vômito. Sentiu-se enjoado ao recordar-se. E desde então decidira que nunca mais se apaixonaria em vida.

Estava deitado em sua cama, contemplando o teto, cutucando o nariz. Pensava em Mel e no jeito que ela mudou sua vida. No jeito de andar, de se expressar. Lembrou-se de sua promessa e de como havia sido tolo de prometer a si mesmo uma coisa tão absurda. Por chegar a pensar em privar-se de uma dádiva humana, no verdadeiro milagre divino: o privilégio de sentir amor.

Ergueu-se decidido. É agora, pensou.

Vestindo seus tênis, não se preocupando com os cadarços desamarrados, pisou forte em cada degrau da escada, indo do primeiro andar ao térreo em poucos segundos. Passou reto pela mãe que lustrava um móvel, ignorando suas perguntas irritantes e habituais:

- Fred? Aonde você vai?

Falar com Mel, respondeu a si próprio.Dizer a ela tudo que ela me faz sentir!, esbravejou por dentro.

Saiu da casa e virou a direita. Em três passos ficou frente a frente à porta de Mel.

É agora!

Tocou a campainha. Pressionou o botão por mais tempo que o necessário até que a porta fosse aberta.

Uma figura mais ou menos do seu tamanho abriu a porta. Uma menina de bochechas cor de rosa, pele alva, cabelo ondulado e dourado.

- Oi? – disse a garota.

Fred engoliu em seco.

- Pois não? – retornou.

- Ahhh....

Ficaram se olhando.

- SeráqueeupoderiafalarcomaMel? – disparou.

- Ãh?

Não foi preciso repetir a pergunta. Ela estava lá. Ao fundo, observava intrigada. Caminhou devagar até a porta, com seu rebolado infalível. O coração de Fred disparou.

Mel encostou-se à porta. Centímetros os separavam. Sentiu a primeira golfada subir-lhe à garganta.

Rápido antes que fosse tarde demais e banhasse seu amor com aquilo que chegou a ser, horas antes, macarrão, a abraçou. Com força.

- Eu te amo – disse – Eu te amo! – disse mais alto.

Seus olhos expurgavam lágrimas honestas e salgadas. Sentia seu cheiro! Sentia seu coração disparar! Sentia o amor fluir em seu corpo!

- Sai daqui, menino! – disse a garota que lhe abriu a porta, dando um tabefe seco na cabeça de Fred – Solta ela! É minha...! Mãããe!

Fred a apertava com força. A menina a puxava para ela. Tornou-se um cabo de guerra. Mel gritou assustada.

- Ei, o que está acontecendo?! – pelo tom da pergunta, Fred percebeu ser a mãe. Afrouxou o braço, cedendo Mel para a garota que a abraçou, assustada – Quem é você?!

- Ele quer roubar a Mel! – denunciou a menina, apontando o dedo trêmulo para ele.

- Saia fora daqui, antes que te dê uns cascudos, seu moleque!

Fred fugiu assustado para longe dali, gritando para aquelas duas bandidas que elas não entendiam nada de amor. Mas deu-se por satisfeito por não ter vomitado e, principalmente, pelo seu momento com sua amada.

O que o entristecia era saber que teria que tentar convencer a mãe a comprar um cachorro que fosse obrigatoriamente idêntico a Mel, já que à própria a mãe se recusava a oferecer uma oferta.

domingo, 9 de agosto de 2009

O recado do homem público

O recado foi-me dado.Era uma voz mulata. Uma voz doce.
O recado, aclamado em forma de poesia, ao som dos coríntios e cantado à peito cheio, me atingiu num toque leve e sereno.
O recado, como quem não quer nada, voou em fumaça lenta e apossou-se de um corpo doído e uma alma corroída, assoprando nos ouvidos de terceiros como a sonata de um piano maestrado, com a desculpa do neologismo, para fazer-se ouvir aos surdos que não entendem sequer clareza da música que nos faz chorar.
Em seu palco, rodeado e orquestrado, o recado declamou:

Tarde aprendi que bom mesmo é dar a alma como lavada. Não há razão para conservar esse fiapo de noite velha. O que significa isso?
Há uma fita que vai sendo cortada, deixando uma sombra no papel. Discursos detonam.
Mas não sou eu quem esta ali, de roupa escura, sorrindo ou fingindo ouvir. No entanto, também escrevi coisas assim, para pessoas que nem sei mais quem são, de uma doçura venenosa de tão funda.
Não serei um poeta de um mundo caduco, também não cantarei o mundo futuro. Estou preso ao presente e olho os meus companheiros: são taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, observo a enorme realidade. O presente é tão grande! Não nos abastemos, vamos de mãos dadas.

Dei-me ao luxo de apenas concordar. Apenas concordar.