sábado, 27 de junho de 2009

Como um velho carnaval

Vem de um lugar que não conheço

Tamborila no meu peito

Um afluente de desejo,

De repulsa e de tormento

Como em um velho carnaval.


Grita a voz que desconheço

Impondo seu respeito

Com um sussurro matreiro

E eu atento em um silêncio sorrateiro

Como em um velho carnaval.


E de repente se mistura, se entende

Se escuta, compreende a beleza

Do chamado quieto e longo

Do seu verde doce olhar.


E não mais como um velho carnaval

Em que suspiro vira grito

E fraqueza é rebeldia

Eu atendo o seu convite:


Estendo as mãos, busco seus braços

Fazendo da folia e feriado

A hora certa de escutar a quietude

Da música que seus olhos me embalam a dançar

Como em um bom e velho carnaval...

terça-feira, 16 de junho de 2009

A última década

Eu estava me descobrindo. Não sabia como era. Todo mundo falava que era uma das coisas mais incríveis do mundo. O tipo de experiência única e que todo ser humano deveria experimentar um dia, nem que fosse no último.
Eu vivia aquilo com tanta paixão, com tanto entusiasmo, que eu mal acreditei quando meu pai me fez a proposta, um pouco antes da data supracitada – esta nova não me recordo – em uma noite fria.
- Quer ir ver a final no Palestra? – larguei a cabeça do meu irmão na hora – O Robson é afilhado de um cartola do Palmeiras e ele vai. Conseguiu quatro ingressos.Numerada coberta, linha do meio campo, pouco abaixo da cabine da Globo. Quer ir?
- P u t a q u e p a r i u! – eu tinha dez anos, mas tinha aprendido vários palavrões ao longo dos jogos que eu assistia, sempre nervoso.
O gozado é que, quando pequeno, muito tempo antes do convite, detestava futebol. Achava um saco. Não sabia jogar, era caneludo, grosso, mole. Até que um dia me colocaram embaixo do gol. Foi nesse dia que a minha vida mudou.
Meu ídolo tinha passado a ser Velloso, o–melhor–goleiro–do-mundo. Leão, Oberdan e Valdir de Moraes,mitos. Sérgio, um excelente reserva, campeão com o time durante vários outros anos. Sabia que em todo time tinham três goleiros. Veloso, o titular. Para mim, imbatível. Sérgio, o reserva de luxo. Mas na ordem, era o terceiro.
- Ué? Quem é o outro? O segundo? – perguntei.
- Marcos – meu pai havia respondido. Eu deveria ter na época 09 anos recém completados.
- É bom?
- É – respondeu, como quem diz as horas. Não havia sentido muita firmeza. Meu pai reparou em minha cara de interrogação e complementou – Acho que sim, nunca o vi jogando.Todo goleiro do Palmeiras é bom.
Desde então, quando virei goleiro – e, modéstia a parte, dos ótimos – me tornei um viciado. Uma enciclopédia alviverde. Passei a acompanhar passo a passo da equipe: via todos os jogos que passavam na tevê, ouvia no rádio, fazia promessa, não escrevia no caderno com a caneta preta em dia de clássico com o Corinthians e usava e abusava do verde quando o Palmeiras jogava. Mas nunca tinha ido a um jogo. Tinha até chorado uma vez, quando fomos eliminados do Brasileirão de 1998, nas oitavas ou quartas de final, não me lembro, pelo Cruzeiro, em pleno Parque Antártica.
- Quando você for mais velho, eu te levo num jogo.
Que quando eu for mais velho, o quê! Eu quero ver o Velloso pulando de um lado para o outro, eu queria ver se aquele cabelo do Oséas era de verdade, o Paulo Nunes causando, o Alex comandando o time com aquela maestria irrefutável, o Arce colocando a bola aonde ele quisesse e até o Junior Baiano fazendo cagada. Eu queria ver meu time, o quanto antes.E naquela hora, quando o convite me foi feito, eu não tive a menor dúvida.
Eu não tinha crescido muito desde a promessa do meu pai. Teria a chance de ir ao meu primeiro jogo de futebol, justamente a final do mais importante torneio da América.
Meu pai havia combinado comigo que me buscaria mais cedo do treino, iríamos para casa jantar e logo após partiríamos rumo ao Palestra Itália. Foi o que se foi feito.
Minha mãe tinha medo que eu fosse com a camisa do time por causa de “brigas-com-a-torcida”.
- Pelo amor de Deus, só vai ter palmeirense! – dizia meu pai.
- Ta, mais coloca um casaco por cima.
Como eu não tinha muita escolha e era pequeno, acatei. Coloquei um blusão grosso e quente. No fundo, eu gostei. Tremia tanto que não sabia se era de frio, como de fato estava naquela noite, ou de nervoso.
Buscamos o Robson, afilhado do cartola que agora eu não faço idéia de quem seja, e partimos de vez ao estádio.
Eu fazia idéia já que a noite me proporcionaria fortíssimas e inesquecíveis emoções. Apenas não sabia que seriam tão fortes assim.
A primeira coisa que aconteceu quando paramos o carro em frente ao posto da rua Turiassu foi ouvirmos uma gritaria ensurdecedora. Eu saí do carro e olhei assustado para trás, que era da onde vinha a algazarra. Mal tinha conseguido assimilar o que estava acontecendo, meu pai puxou meu casaco e me arrastou para trás de um poste, onde pressionou seu corpo junto ao meu, conforme um escudo.
- Não se mexe! – ele gritou
Eu não me mexeria mesmo, não dava. Mas não resisti. Eu tinha que saber o que estava acontecendo. Coloquei a cabeça para o lado, por baixo do braço de meu pai.
Vi uma matilha alviverde correndo desvairada, jogando pedaços de madeiras e atirando rojões coloridos contra a cavalaria da polícia militar, que respondia atirando com armas de bala de borracha. Conforme eu descobri no dia seguinte, foram vendidos mais ingressos que o real suporte de estádio e, praticamente todos,eram falsos.
Eu me desesperei na hora. Já comecei a imaginar um monte de tragédia.

Menino de dez anos é baleado e não vê o time ser campeão” ou pior, “Menino de dez anos é baleado e Palmeiras perde!

Mas, como Deus é pai também, não fui baleado. Entretanto, meu pai e o Robson, que até hoje eu não sei onde foi parar na hora daquela confusão, resolveram entrar do outro lado do Palestra Itália, pela Matarazzo.
Cacete, já eram quase nove e meia e a gente ia demorar um tempão pra conseguir entrar. Iríamos perder no mínimo uns dez minutos de jogo.
Como eu costumava ser, e ainda sou um pouco, dramático, a gente não perdeu absolutamente nada.Entramos pelo outro portão a tempo de ver os jogadores perfilados cantando o hino nacional.
Era uma gritaria e uma intensidade tamanha que eu conseguia ouvir meu coração batendo. Me arrepiei ao olhar para a Mancha Verde pulando, gritando, milhares de bandeiras balançando de um lado para o outro, rojões de luz verde acessos e um estardalhaço de palmas que tornavam o Hino Brasileiro um mero coadjuvante desapercebido.
Chegamos ao nosso setor, as numeradas cobertas. Já devidamente acomodado pude vislumbrar decentemente os jogadores naquele palco verde. Estavam todos lá: Felipão, Arce, Júnior Baiano, Roque Júnior, Júnior, César Sampaio, Rogério, Galeano, Alex, Zinho, Oséas, Evair, Paulo Nunes, Sérgio, Euller...e ele. Ele!
Ainda admirava o Velloso, mas uma pessoa em especial estava se tornando, a cada dia que passava, algo magnificamente fora de série, um ídolo inquestionável, um cidadão que tinha tudo para tornar-se naquela noite, como em outras passadas, um herói santificado. Seu nome: Marcos.
Seu primeiro jogo contra o Corinthians foi, sem dúvida, a melhor atuação de um goleiro que já presenciei em toda a minha vida.
- Eu não estou acreditando – meu pai disse na ocasião, quando o goleiro defendeu uma bomba do Marcelinho, no segundo tempo. Eu sequer consegui responder. Estava de boca aberta.
Não estou exagerando. Todo palmeirense e corintiano que se lembra daquele jogo sabe o que estou dizendo. A consagração foi na semana seguinte: pênalti do Vampeta defendido.
Com esse nome, ele só pode ser santo! – exclamava Galvão Bueno – São Marcos!
O apelido pegou e dura até hoje. Desde então, depois daquele dia fatídico, a cada jogo, um milagre atrás do outro. Defesas humanamente impossíveis. Vasco da Gama, River Plate..era inacreditável.E não só pela Libertadores, como também pelo Campeonato Paulista e pela Copa do Brasil, cujas competições o Palmeiras disputava simultaneamente e chegado até as finais nos três campeonatos.
Eu já estava achando tudo o máximo, mas quando eu o vi, com sua camisa azul prateada, ao lado do Sérgio com a sua azul amarelada, eu finalmente disse:
- Caralho!
Não demorou muito, o juiz já havia apitado o início do jogo e, tão rápido como seu começo, veio outra notícia: um senhor havia morrido na arquibancada.Enfartou. E a partida nem tinha começado! Que noite era aquela!
Até hoje fico pensando se o senhor suportaria as coisas que eu assisti: no primeiro tempo, bola na trave de Roque Júnior e gol anulado do Oséas, entre outras coisas, além de uma defesassa do Marcos num chute do Bonilla. Terminou zero a zero.
Eu tremia de nervoso. Meu pai me oferecia no intervalo amendoim, sorvete, pipoca, salgadinho...não passava nada pela minha garganta, que estava tão seca que eu cheguei a pensar que minhas glândulas tinham parado de produzir saliva.
O segundo tempo começou e minha agonia durou pouco mais de 16 minutos: Felipão tinha tirado o Arce e colocado o Evair. Na hora eu fiquei puto, por que eu sempre achei o paraguaio foda. Mas sempre vi o Evair como gênio. O Rogério foi deslocado para a lateral direita e cruzou uma bola daquele lado do campo. O Paulo Nunes escorou para o meio da área, direto na cabeça do Oséas que arrebatou. O zagueiro colocou a mão na frente para evitar aquilo que seria o primeiro gol e o juiz não teve dúvida: pênalti.
Eu pulei tão alto, agarrei meu pai ao meu lado e um cara que eu não conhecia. Gritava de euforia. Mas a agonia voltou. O Arce tinha saído, quem vai bater? E se errar? Eu estava histérico!
Vi o Evair ajeitando a bola e meu coração disparava.
- O Evair faz! O Evair faz!– gritava meu pai, talvez mais nervoso do que eu, por que não havia necessidade de ficar gritando aquilo, daquele jeito, e repetidas vezes.
Ele tomou distancia e bateu. Coloquei a mão na boca em forma de súplica. Goleiro de um lado e bola do outro. Gol!
Gritei, pulei, agradeci aos céus, xinguei um monte de gente. Faltava mais um.
Lembra no começo do texto que eu queria muito ver um jogo, nem que fosse pra ver uma cagada do Júnior Baiano? Então, ele fez.
Um carrinho criminoso e desnecessário dentro da área. Pênalti.
Zapata bateu e fez. Bola de um lado, Marcos do outro. Gol.
O estádio emudeceu por alguns segundos. A Mancha começou a puxar um grito de incentivo que contagiou a todos e, em pouco tempo, agíamos como se não tivesse acontecido nada.
Passou pouco tempo e o Oséas desempatou. Boa jogada do Júnior pela esquerda, tabelinha com Euller, cruzou na área e caixa. Dois a um.
Desse jeito, a conquista seria decidida nos pênaltis. O tempo foi passando, minha agonia foi crescendo. Para piorar: os colombianos faziam uma cera grotesca e irritante e, de cabeça quente, não lembro o que o Evair fez e acabou sendo expulso.
O jogo terminou. Foi como se tivessem despejado um balde de gelo em cima de mim. Meu nervosismo crescia ainda mais.
Na boa...penaltis?! Final de Libertadores?! Do jeito que eu estava?! Eu não conseguia pensar em coisas boas...Na minha cabeça veio o Palmeiras perdendo em pleno Palestra, aquele bando de colombiano fazendo festa na nossa casa e meus amigos me zuando na tarde seguinte.
Eu tinha que fazer alguma coisa. Eu precisava ir ao banheiro.
- Você ta falando sério?! – perguntou meu pai, incrédulo.
- Aham!
- Não dá pra agüentar?!
- Não!
- O banheiro fica longe e é nojento...
- Pai!!
Ele me levou a contragosto. Descemos a arquibancada inteira, passamos pelo tiozinho que toma conta do portão e entrei no banheiro.
- Cuidado aonde você vai pisar!
Eu não tinha dado muita atenção, mas depois percebi o motivo do aviso.
O banheiro era uma piscina. Eu mesmo vi dois caras fazendo xixi no meio do ambiente, por preguiça de ir até a privada. Eu fui até o mictório e comecei. Fechei os olhos e comecei a rezar.
Mais falei sozinho do que rezei. Que era injustiça o Palmeiras perder, que os caras do Deportivo não mereciam por causa da catimba e que também não era justo comigo. Um papo assim.
Sai correndo, encontrei com meu pai do lado de fora e subimos de volta aos nossos lugares.
Não tínhamos idéia de quem seriam os cobradores. Só vimos que começaria conosco e que quem abriria a série era o Zinho.
Foi uma das sensações mais estranhas que já senti. Um misto de pavor e esperança, um arrepio frio. A bola explodiu na trave.
Era como se toda a felicidade tivesse sido exaurida de cada um daqueles trinta e cinco mil torcedores. Eu ouvi um suspiro longo, único e um silêncio arrebatador. Aquele silêncio esmagou meus ouvidos. Foi impressionante. Eu juro ter ouvido o som da bola quicando no chão, os gritos de alegria dos jogadores adversários e as passadas lentas e tristes do nosso ex-camisa 11.
Logo em seguida, o goleiro Dudamel fez um a zero.
O Júnior Baiano foi o segundo.
- Júniro Baiano?! – meu pai e o Robson gritaram, desesperados.
- O Felipão deve saber o que está fazendo... – falei.
- É...
Ele bateu mal pra caramba. Mas a bola entrou. E pênalti bem batido é aquele que entra. E outra: ele não teria coragem de fazer duas cagadas num jogo como aquele.
Roque Júnior e Rogério marcaram logo depois, e a série estava igual: três a três.

Marcos não pegou os dois pênaltis seguintes por muito pouco. Mas eu tinha esperança que aquele quarto era dele.
O colombiano chutou e acertou a trave. Eu pensei que ele tivesse defendido. O estádio foi abaixo. Eu levantei as mãos ao céu e agradeci. Precisávamos desempatar e torcer para que eles errassem o seguinte.
O Euller correu que nem uma gazela empinada pra bola e bateu com uma maestria e frieza esplendorosa. O estádio veio abaixo pela segunda vez.
Pronto! Agora é com você, Marcos!
O estádio gritava em coro o nome do goleiro e, em seguida, Fora! Fora!
Eu me sentia gelado. Nervoso. Arrepiado.
Zapata tomou distância e bateu.
O mundo parou por alguns instantes. Vi, em câmera lenta, o Marcos pulando para um lado, enquanto a bola corria para outro. Fodeu, pensei.
Depois pensei que a bola tivesse furado a rede, quando a vi batendo nas placas de publicidade atrás do gol – meu nervosismo é um tanto quanto pessimista, eu sei. Ainda tento melhorar.
Mas a gritaria que se estendeu depois me fez perceber que não havia mais motivos para ficar nervoso. Vi o Marcos correndo para a torcida com os braços estendidos, o Felipão pulando no banco e uma multidão de verde e branco em histeria na minha frente.
Fiquei parado. Estático. Catatônico. Demorei a acreditar, a perceber o que estava acontecendo. Só me mexi quando meu pai puxou minha gola do casaco e gritou:
- É campeão! É campeão! Puta que pariu, é campeão!
Tinha sido a terceira vez que o Palestra caíra abaixo. A segunda em que chorara em um jogo. E minha primeira em um estádio de futebol.