quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

O último tópico rocambolesco


Olá!

Pois é, já estamos em dezembro. O ano já vai chegando ao seu fim e a podridão da corja, que finalmente arranjou um lugarzinho, mesmo que escuro e apertado, sem professores mandando-lhe ficar quieto e muito menos sua mãe querendo que desligue o computador, conseguiu sobreviver.

Comecei em meados de junho, acho, com a vontade de colocar um pouco das minhas idéias na internet para que os amigos lessem. Nem todos leêm, muitos mal sabem que o Recanto da Corja existe, mas fato é que esse cantinho está sobrevivendo, e bem.

Quem me conhece sabe, e não é muito difícil perceber, que meu falatório se estende tempo suficiente para irritar até àqueles cuja audição não é das melhores. Tem gente que fala, fala, fala e no fim acaba dizendo nada. Não sei se é meu caso, entretanto existe um cidadão que domina tão bem o uso da retórica que é capaz de enrolar você de cabo a rabo. E olha que eu sei o que estou dizendo.


O Rei do Elogio é um cara bacana. Ele me lembra muito um professor de biologia que tive no colegial, chamado Tadeu. Me lembra também um pouco alguns engravatados que eu vejo na tevê, uns micareteiros metidos a xavequeiros bem sucedidos e apresentadores de programas de auditório. Todos falam, falam, falam e falam...e no fim não dizem nada.

Talvez tenha sido por isso que me identifiquei com a campanha da Sprit logo de cara. Ele é capaz de te seduzir dizendo que és estrogonoficamente respeitável e ainda por cima arrancar suspiros de raparigas com adjetivos charmosíveis. Ele é fodão!

Aristóteles foi um dos primeiros a estudar a arte da retórica, mas nada se compara ao Carlos Nascimento, o Carro Velho, que tornou-se um fenômeno na Internet graças a suas brincadeiras de enrolar os outros (embora Aristóteles tenha mostrado por A mais B que retórica não é sinonimo de
enrolação...enfim, leiam Linguagem e Persuasão do Adilson Citelli, vale mais a pena).

Enfim, basta clicar aqui para quem se interessar em ouvir esse mestre do discurso em ação.

E, como mensagem de fim de ano, já que vosso autor não se pegou mais escrevendo crônicas, desejo aos leitores da Corja um feliz natal e um dois mil e nove fantástico.

Dicas para 2009:

*Leiam livros (recomento Ensaio sobre a Cegueira, do bom e velho Saramago e qualquer um do Luís Fernando Veríssimo, principalmente Orgias);
*Vejam filmes ( recomendo Valente - the brave one com a brilhante Jude Foster e dirigido por Niel Jordan. Foi um dos filmes mais legais que assisti esse ano);
* e escutem música ( recomendo Amy Winehouse. Aproveitem que ela ainda está viva).

Até 2009.

A Corja agradece

sábado, 22 de novembro de 2008

Solidão

Os desprazeres da noite incompleta ainda revigoravam na cabeça de Camila, inconvenientemente.

Desgostosa, ela espreguiçou-se em sua cama, empurrando com os pés seu cobertor no chão gelado, sentindo o ar frio da madrugada impregnar os poros de seu corpo nu e o meloso ressecado em suas curvas. Doce e ingrata lembrança.

Olhou para lado. O travesseiro estava desocupado, sem cabeça caída, e o lençol esboçava apenas marcas daquilo que fora uma péssima noite.O relógio dizia que ainda faltavam duas horas e meia para as seis da manhã e, aparentemente, a única pessoa acordada naquela casa era a própria Camila. Ela não escutava som algum.

Ergueu-se travada. As solas de seus pés estavam tão duras quanto as ourelas de seus seios. Caminhou com atenção, receosa que pisasse em algum caco daquilo que chegou a ser uma garrafa ou copo, ou em algum corpo desacordado e inerte.

A vista, já não tão turva, lhe indicava que ainda havia visitantes. Não que estes estivessem em condições de notar sua presença perambulando pela casa, mas fato consumado que seus colegas estavam tão presentes quanto ela.

Tomou cuidado para não pisar em Ricardo, que de cueca, dormia – pelo menos era o que Camila esperava – abraçado com uma garrafa de vinho barato. Esticou a outra perna para evitar contato com o corpo escancaradamente pelado de uma garota que Camila não conhecia, fazendo-a pensar, enquanto apoiava-se no móvel e virava a direita para não tocar seu pé na bunda branca empinada de Rogério, que estava montado e desmaiado em cima de um puf, o que ela estava fazendo ali.

Camila ainda contou sete corpos, três de mulheres e quatro de rapazes, estirados, todos desnudados, alguns uns sobre os outros, pelo chão da cozinha. Ouviu um barulho tímido no quartinho da empregada e reconheceu, ao esticar seu pescoço, Roberta sentada sobre as pernas de João, de costas para ele, e encaixada em Pedro. Ainda viu um corpo gordo sujo de vômito jogado próximo ao trio, que ensaiava movimentos elétricos.

- Roberta, você viu o...? – disse, com um pouco de dificuldade, sentindo sua saliva pastosa predominar sobre sua fala.

- Ah...ele...não....vocês...hum...!

- Não...

- Ele foi embora... – disse João, rapidamente, terminando a frase com um grito fraco.

- Mesmo...? – nenhum dos três respondeu.

Camila deu meia volta, deixando o trio continuar sua atividade, passou pelos corpos caídos da cozinha e da sala e voltou ao seu quarto.

Ficou impotente em pé frente a janela, não se importando com as rajadas de vento gelado que estouravam sem seus seios.

Silêncio. Sozinha. Sentiu os olhos arderem. Lágrimas quentes escorreram por seu rosto. Os dentes batiam uns aos outros. O peito doía. Silêncio.

O peito doía e o silêncio angustiava. Nenhum som, nenhum ruído, nenhum zunido. E seu peito doía.

E de peito doendo, deitou em sua cama. Soltou um gemido doloroso, aflito. Seus olhos estavam quentes e seu rosto salgado. Seu peito lancinava.

Chorando, passou a mão pelo corpo, sem pressa. Vagarosamente, posou-a em seu campo de ralo felpo. Estava na hora de sentir-se bem.

Talvez a infeliz companhia de horas atrás não fosse tão ruim. Sozinha ela não estaria agora.

Reinava o silêncio de seu choro, enquanto se tocava. E agradecia. Assim, ao menos, não ouvia seus gritos.

sábado, 18 de outubro de 2008

Metrópole

Segunda Feira:

O sol brilhava do lado de fora do prédio cimentado,simples em sua decoração arquitetônica, uma mescla em dégradé do cinza pálido que sempre colorira a temida cidade de São Paulo.

Mormaço forte e escaldão, pastava a fumaça vomitada dos escapamentos dos carros e jogava a miscelânea nos corpos desprotegidos que vagavam, levianamente ou não, pelas calçadas esburacadas da metrópole.

Igor, no momento, estava protegido. Sentado na cadeira de madeira lascada na sala 37 do prédio cimentado, respirava apenas o ar gelado transeunte, nem se importando se embutido nele houvesse a mais pura essência da titica daqueles ratos voadores chamados de pombas. Ou aspirava as reles fezes ou se empastava com o ar da cidade, do lado de fora.

Já era meio dia. Talvez fosse a desculpa que estivesse esperando cair do teto da sala para levantar-se e voltar para casa; entretanto havia combinado consigo mesmo, ainda sabendo que raramente cumpria suas autopromessas, que se empenharia mais para passar no vestibular daquele ano. E, conforme havia informado para seus pais, não tinha hora para voltar. E que não o esperassem para jantar.

- Saco de aula – resmungou consigo mesmo.

Seu estômago roncava. Não entendia nada de química, mas tinha certeza que sua necessidade fisiológica seria um prato cheio para o professor explicar ao restante da classe todas as intermináveis equações que ocorriam no ser humano quando este sente fome.

Levantou-se da cadeira e passou apertado pelo restante da fileira, praticamente colada com a da frente. Foi até o banheiro.

Olhou-se no espelho.Diria que estaria branco de fome, caso fosse caucasiano. Todavia, sua pele mulata-seis-e-meia-da-tarde era refletida como um bege claro. Ajeitou os cabelos negros e encrespados por desencargo de consciência, pois sabia que eles não costumavam se endireitar exatamente como desejava. Cabelo duro fica do jeito que cresce.

Jogou água no rosto, examinou os dentes brancos e tirou da ponta do nariz adunco um fiapo de tecido,o que fez-se questionar durante a restante meia hora da aula de química como fora parar lá.

A sineta tocou. Acabou a aula do cursinho na segunda feira. Agora a missão seria almoçar e passar o restante do dia estudando para que pudesse ingressar na faculdade de Jornalismo no final do ano.

__________________________________________________________

Igor tinha apenas almoçado, mesmo não considerando muito bem um cheeseburger e um refrigerante como um almoço, mas ao julgar pelo horário do dia e pela quantidade de dinheiro que havia na carteira, sim, aquilo fora uma refeição bem vinda.

Mas naquela hora, seu estômago roncava ferozmente; seus olhos quentes pesavam e sua cabeça, já vazia, flutuava em algum lugar distante demais da Sala de Estudos aonde estava.

Chega de Getúlio Vargas. Chega de geopolítica. Ao inferno Camões e seus amigos marinheiros desbravadores. Olhou no relógio mais uma vez: nove e meia da noite.

Nove e meia da noite e a única coisa que havia comido fora um cheeseburger, um refrigerante e pedaços de duas barras de chocolate. Não há quem agüente. Juntou seu material, jogou-o dentro da mochila e partiu em disparada para bem longe daquele prédio. Não havia lugar em que mais desejava ficar senão sua casa.

O passar massante da tarde fora anestesiado, em certas partes, pela companhia que encontrara. Encontrara era um termo que Igor decidiu usar para enganar a si próprio, pois seguira Jéssica da lanchonete até a sala a qual ela escolhera.

Decidiu sentar-se na mesma mesa que ela ao acaso também, do mesmo jeito que fingira não entender direito o que fora a Polaquinha e em qual parte da história entrava a Ilha dos Prazeres. Ouvir o ressoar da voz doce de Jéssica era, de fato, um motivo a mais para ficar até de noite estudando.

Os dois estudaram no mesmo colégio, apesar de nunca terem ficado na mesma classe. Ambos tiveram insucesso no vestibular e Igor decidiu justamente o mesmo curso pré-vestibular que ela ao saber, por intermédio das fofocas que ouvia dos ex-colegas de classe, que Jéssica optara pelo cursinho o qual estudava agora, mesmo sendo fora de mão e muito mais caro que os mais próximos à sua casa.

Ele sabia que o sonho dela era estudar Publicidade, sabia que era de Virgem e entendia de mapa astral e esoterismo, que tinham a mesma idade, que ela amava teatro, gostava de MPB e ouvia rock nacional, chocólotra compulsiva e apaixonada, Igor nunca soube muito bem o porquê, por esquilos.

Ele sabia que Jéssica não fazia idéia que seu nome era Igor, que não tinha um estilo musical muito bem definido, que fosse de Aquário e até achava interessante astrologia mas não via muita lógica em como a posição do sol em relação à Terra definiria a personalidade de alguém, tudo isso equacionado com a data e hora de nascimento de uma pessoa, que também gostava de teatro e que evitava comer chocolates para não que surgissem espinhas em seu rosto. Mas Igor não se importava. Tudo a seu tempo.

Desconsiderando a grande probabilidade de acnes na face, Igor comprou duas barras de chocolate e abriu a primeira. Abocanhou-a, deixando-a amostra de Jéssica, que escrevia compenetrada até ver o tablete com uma ponta faltando.

- Quer..? – ofereceu Igor, tentando simbolizar em seu semblante que sua pergunta fora tão ocasional como estar sentado de frente para ela.

- Não, obrigada... – respondeu, simpática, rindo e mostrando seus dentes perfeitos. Seu sorriso salientou a sensual micro-pinta que marcava sua pele sedosa, próxima ao lábio superior no canto direito. Seu pequeno nariz pontudo também era marcado com uma pinta em seu bico e seu cabelo castanho-claro esvoaçava a cada sopro do ar condicionado.

- Pode pegar, se quiser... – insistiu.

- Ta bom, vai... – disse tímida e ainda sorridente, arrancando um pedaço da barra e o abocanhando de uma vez, fechando os olhos e respirando fundo. Ela realmente gostava de chocolates.

- Você é a Jéssica, não é? – perguntou, deixando de lado sua tarefa.

- Sim, sou eu – respondeu, em um quê espantado.

- Jéssica Albuquerque.

- Isso... – ela respondeu, franzindo a testa – A gente se conhece da onde?

- Estudamos juntos – emendou – Não juntos na mesma classe, mas no mesmo colégio – prosseguiu ao ver que seu rosto expelia um enorme ponto de interrogação – Mesma série...

- Desculpa, mas eu não me lembro de você... – disse sem graça.

- Sou o Igor.

- Ah, o Igor! Igor Brandão?

- Não... Portela...que nem a escola de samba.

- Ahhh...prazer – ela esticou a mão e os dois se cumprimentaram.

- Então...você quer prestar o que mesmo? – Igor perguntou, puxando assunto mesmo já sabendo a resposta. Deixou com que ela falasse quase tudo aquilo que ele já sabia pois, mesmo sabendo que ela gostava de música brasileira,desconhecia sua adoração por Chico Buarque, João Bosco, Elis Regina, Renato Russo e Cazuza. E sua paixão por Vinicius de Moraes.

- Ah, música velha então?

- Música boa – respondeu, guardando a caneta no estojo e com a boca cheia de chocolate da segunda barra.

- Ah, sim...claro...foi o que eu quis dizer...

A boca de Igor esvaziou-se da frase que emitia, como se seu último som morresse ao vento. Viu, por trás de Jéssica, o surgimento da figura loura e espadaúda, olhos verdes e boca fina, emergir da larga porta de entrada da Sala de Estudos.

Celso Guimarães trajava sua tradicional camisa colada, estampada de listras horizontais que se revezavam em amarelo, branco e azul e seu cabelo louro e fino colava-se na cabeça em virtude do boné apertado que vestia. Ele aproximou-se de Jéssica, cutucou sua orelha. A garota inclinou sua cabeça, assustada com a repentina entrada de dedo em seu ouvido e, ao notar que era Celso o dono daquele indicador cumprido, sorriu, deixando Igor inerte.

- Oi coelhinha – disse Celso. Igor também sabia que era assim, com esse apelido ridículo, que Jéssica era chamada por seu namorado desde pouco tempo depois da concretização do namoro dos dois, ainda no colégio.

- Oi, amor – ela disse, pouco antes de beijarem-se. Igor assistia – Então... – disse Jéssica, após desgrudar seus lábios da boca de Celso – esse é o Igor.

- Opa, prazer! – disse, erguendo a mão.

- Oi... – respondeu com vagueza.

Jéssica ficou apenas mais alguns segundos sentada. Não demorou muito para Celso e ela irem embora.

Igor os assistiu partir após despedirem-se e tentou voltar suas atenções aos estudos, coisa que não aconteceu pois, desde o momento em que Jéssica sumira de vista com seu namorado, todas as frases lidas de sua apostila perdiam o combate travado em sua mente, no quesito prioridade, com sua paixão platônica. Jéssica Albuquerque era tão ou mais importante que Getúlio Vargas.

Eram nove e quarenta e três quando se sentou no banco do ponto de ônibus, não muito longe do curso, após pisar em um mendigo. Ele nao o tinha visto.

Os carros corriam na avenida sem pudor, as luzes vermelhas, amarelas e azuis dos veículos cortavam a cidade escura, pipocando com freqüência em seus olhos, tão frenéticas quanto o concerto de buzinas e freadas produzidas pelos protagonistas das ruas de São Paulo.

Ao seu lado, uma senhora com uma sacola em cada braço. Do outro, um senhor negro com uma bíblia em punho e, ao lado dele, uma garota estudante.

Olhou o horário novamente. O ônibus estava demorando.

Viu um rapaz magricela, cabelos espetados e olhos azuis, aproximar-se do ponto. Ele esfregava as palmas da mão, tremelicava as pernas e seu rosto virava de quando em quando para os lados. Deveria estar com frio. Igor estava.

O garoto passou a fitar o ponto, andando de um lado ao outro. Igor evitava olhar para ele, mas seus olhos insistiam em desobedecer-lhe, fitando-o de esguelha.

- Oi, tem horas? – perguntou o garoto.

- Dez pras dez – respondeu de sobressalto.

O clarão emergiu de longe e Igor reconheceu como sendo o farol alto do ônibus. Levantou-se.

O ônibus parou de frente ao ponto. As pessoas próximas, já de pé, formaram uma fila. Igor permaneceu entre o senhor da bíblia e a senhora das sacolas. O rapaz magricela foi para o fim.

Igor subiu as escadas, pagou a passagem ao cobrador, andou no corredor do veículo e sentou-se ao lado de um homem gorducho, coberto por um casaco empacotado.

Tinham poucos passageiros, o que o fez estranhar. Além de seu vizinho de assento, um homem sentado ao fundo, um casal de amigos e uma mulher pouco à frente.

Colocou a mochila sobre as pernas, apoiou a cabeça no balaústre, fechou os olhos e suspirou fundo.

- Ahhh.... – gemeu com os olhos semi-serrados. Avistou o rapaz magricela perto da catraca, suas mãos ainda sendo esfregadas uma contra a outra. Ao seu lado, um homem negro, beiças inchadas e cabelo curto encarrapitado, cochichava em seu ouvido. O rapaz magricela acenava com a cabeça, seus olhos azuis fixos em alguma coisa pregada no chão.

Igor virou o rosto e viu o outro lado da calçada locomover-se. O ônibus já estava saindo. Reparou em uma mulher de seios fartos, parada na esquina.

Um grito cortou sua capacidade de apreciar os peitos da mulher com tranqüilidade. Ele assustou-se abruptamente, o coração palpitando acelerado, vidrando seus olhos no homem negro que sustia uma arma e gritara avisando que ele estava lá para assaltá-los.

- Eu quero todo mundo quieto! – gritava, apontando a arma para cada passageiro petrificado nos assentos do veículo.

Seu coração acelerado descompassava em sua garganta. Seus braços tremiam e seu corpo suava. O homem agasalhado ao seu lado suspirara alto e agarrara o assento com virilidade.

- Ele vai passar recolhendo o que vocês têm! É só isso! Não to afim de matar ninguém hoje!

O rapaz magricela puxou a carteira da mulher sentada à frente de Igor que tremia . O homem negro andava pelo corredor apontando sua arma para todos os presentes enquanto emitia ameaças.

- ...não quero saber de desculpas, é pra passar tudo senão eu volto atrás e mato mesmo...!

- Vai, você! – disse rapaz ao chegar perto de Igor – passa.

- Eu não tenho nada... – disse, erguendo as mãos para cima.

- O relógio, passa o relógio!

Tremendo, Igor desafivelou o relógio do pulso e entregou ao garoto magricela. Reparou nos olhos azuis trêmulos do rapaz. Ele agarrou o relógio jogou-o na sacola.

- Vai, mais!

- Não tenho....

- Você aí, velho, vai pegando a carteira...

-...é pra passar o que tem, não to de brincadeira...!

-Senhor, tenha piedade de nós! – rezava em voz alta o senhor da bíblia.

- Cala a boca!

Igor começou a sentir-se zonzo. O rapaz magricela parecia mais nervoso que ele, o homem agasalhado ofegava com violência e tossia com força, colocando a mão no peito diversas vezes. O casal de amigos encolheu-se num canto, o homem amparando a amiga que chorava desconcertada. O senhor da bíblia prosseguia com suas orações, enquanto o assaltante retribuía gritando, arma apontada para ele.

- Velho do caralho, deus não está aqui para te salvar!

- Pecador!

O rapaz magricela apanhou os pertences do homem agasalhado e ainda o celular de Igor, rumou para o assento do casal que se amparava.

- Passa! – gritou.

- A gente não tem nada...

- ...passa senão eu mato você e sua namorada...!

- Ó Senhor, livrai-nos do mal!

- Vai!

- Livrai-nos, Senhor, livrai-nos de todo mal...

- Cala a boca!

Igor ouviu o assaltante engatilhar sua arma, sentindo sua alma esvair-se do corpo junto com seu coração que saía pela boca. Um gelo cobriu seu corpo, seus pêlos eriçaram e a tontura o atingia com mais força que outrora.

Ouviu um rebuliço repentino e virou-se para trás, instintivamente. O homem, sentado ao fundo, levantou-se abrupto com uma pistola em mão e um distintivo em outra. Igor notou que ele era policial.

- Acabou, chega! – disse o policial – Larga essa arma senão quem vai acertar as contas com deus será você!

O assaltante fora pego de surpresa e ficou sem reação. Por um momento, Igor reparou, o bandido ameaçou erguer os braços mas relutou e continuou firme, apontando a arma para o senhor da bíblia.

- Atira em mim, coxinha, e quem morre é o velho – respondeu frio.

O policial continuou parado, mirando no assaltante. O rapaz magricela ficou estático. A senhora das sacolas, de olhos fechados, rezava. A garota estudante chorava em silêncio.

O ônibus começou a perder velocidade, fazendo com que o assaltante gritasse para que o motorista prosseguisse.

- O sinal ta fechado! – gritou o cobrador.

- Foda-se!

Igor espiou pela janela o disco vermelho do semáforo aproximar-se e pessoas tomando a iniciativa para atravessar a rua. O motorista buzinou com força, ecoando o som estridente da buzina, mesclado com os gritos dos pedestres, em seus ouvidos, mas não chegou a ultrapassar o sinal. Freou com força.

O assaltante, desprevenido, voou em função da inércia, disparando pelo reflexo mais que automático o gatilho do revólver.

Igor acobertou a cabeça instantaneamente, engasgando-se com um grito que não chegou a sair. Ouviu mais gritos agudos e atiçados da mulher e um gemido forte de solavanco que julgou ser do velho da bíblia.

Não demorou mais que um segundo após o primeiro disparo para que Igor ouvisse o seguinte. A gritaria chorosa se intensificou.

Encolhido em seu banco, Igor viu a arma que julgou ser do assaltante deslizar pelo corredor de alumínio do ônibus. Foi o último som que ouviu.

Silêncio. Olhou para seu lado esquerdo e viu o homem agasalhado encolhido no vão entre o par de assentos e outro. Ofegava.

Virou os olhos mais para cima e viu o cobrador levantar-se. Também havia se encolhido.

Igor levantou devagar. Trêmulo, apoiou as mãos no balaústre para não cair ao chão. Não conseguiu e bateu os joelhos no piso.

Viu, jogado como um saco velho cujo dono resolvera abandonar ao notar que não lhe seria mais útil, o assaltante estirado, morto, no chão.

O homem do casal amparava a mulher que, vermelha, soluçava. Ambos permaneciam agachados.

O garoto magricela, tremendo, encostou-se num banco, as mãos erguidas para o céu.

Igor conseguiu-se levantar. Atônito, reconheceu o policial erguer-se, com a arma apontada para o rapaz magricela, desanimado, mãos e roupa manchadas de sangue. Também jogado ao chão, o senhor da bíblia jazia sem vida, morto com o livro sagrado na mão.

Que deus o tenha, pensou. Havia ainda a terça feira.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Desabafo animal

Isso é uma história real.

Quando pequeno, possuía em mim uma razão quase que existencial por animais. Não que hoje eu tenha deixado de gostar, mas naquela época era uma tara...tara doentia!

“Pai, vamos ao zoológico?” – era o tipo de coisa que eu falava quando estava entediado em casa e já tinha cansado de assistir a todos os filmes da Disney ou farto de inventar épicos duelos com meus bonecos, como uma luta entre o Pato Donald e o Yoga, de Cisne, para ver quem conquistava o coração de alguma Barbie que eu e meu irmão deixamos careca da minha irmã. Mas minha irmã achava divertido...

“De novo?!” – era o que eu ouvia como resposta, o que me fazia entender que aquilo significava um não, me deixe ver a corrida.

“E ao Simba Safári?” – esse eu perguntava quando queria algo mais emocionante, afinal não é sempre que se tem a oportunidade de passear entre esses selvagens e ver um camelo lambendo o vidro do seu carro ou um dar um amendoim na mão de um macaco prego que, ao abri-lo e comer a semente, jogava a casquinha em cima de você.

“Hoje não”.

Essa minha adoração por animais me fez pensar, durante certo tempo, em estudar veterinária, o que me fez mudar de idéia quando minha mãe disse que, além de cuidar de gatos e cachorros, teria também que tratar a vida de bichos fofos como escorpiões e cobras corais. Hoje eu faço uma coisa um pouco diferente, embora isso não me impeça de torcer pelos profissionais da área da saúde animal.

Sendo assim, não era raridade alguém me flagrar puxando a saia da minha mãe e implorando por um cachorro...Acho que de tanto insistir, acabei ganhando meu primeiro animalzinho.

Um dia fui à casa do Rodrigo e vi que, além de um casal de tartarugas, um super aquário, passarinhos e um cachorro, ele tinha...chinchilas! Um casal de chinchilas! Cara...que demais! Chinchilas!!

“Pai, me dá um chinchila?”

“Fale com sua mãe”

“Mãe, me dá um chinchila?”

“Fale com seu pai”

Por que os pais sempre fazem isso?

“Eu já perguntei! Ele disse pra eu falar com você!”

“Então não. Chinchilas são sem graça e fazem muita sujeira...”

Calma aí! Chinchilas são sem graça? Oras, mãe, saiba que a pelagem da chinchila é cerca de 30 vezes mais suave que o cabelo humano e muito densa, com 20,000 pêlos por centímetro quadrado. Esta densidade capilar impede, por exemplo, que estes animais sejam infestados por pulgas que não conseguem sobreviver na sua pelagem. Por isto, o seu pêlo não pode ser molhado. Elas próprias tomam banho. E banho de areia. Quero ver qual bicho tem coragem de tomar banho de areia! Esses ratinhos são muito machos!

Se isso é ser sem graça, me desculpe pois não sei o que é ser legal.

Passou-se um tempo e eu até já tinha esquecido dos chinchilas, passando a atormentar meus pais com coelhos e pingüins.

“Coelhos fazem muita bagunça...” – dizia minha mãe. Aliás, ela só dizia aquilo. Como se três filhos pequenos não fizessem. Bom, pelo menos os pingüins ainda estavam no páreo.

“E pingüins?”

Ela deu risada...pelo menos ela não disse não.

Minha vida deu um salto no dia das crianças de 98, na minha chácara. Meu pai surgiu com uma gaiola imensa, quase que do meu tamanho, fazendo esforço para erguê-la. Eu vi de longe. Foquei minha vista para ver se não era nenhum delírio.Quando avistei....dentro dela, encolhido num cantinho...um...

“Chinchila!”

Era fêmea e eu a nomeei de Chila. Fizeram muita pressão em cima de mim na hora para saber qual seria seu nome e esse foi o melhor que surgiu na minha cabeça. Bom, o pessoal gostou...

Eu gostava da Chila, embora ela não gostasse muito da gente. Meus pais faziam um esforço pra gostar dela,meu irmão tinha medo e a tampinha da minha irmã a achava super divertida, embora ela não fizesse nada demais, além de comer alfafa e cagar bolinhas parecidas com as balas Tic Tac.

Caso você queria ter um chinchila, é recomendado que você o solte vez ou outra, pois são animaizinhos muito sociáveis e que não devem ter uma vida solitária. Foi o que fizemos.

Eu abri a gaiola e a bicha saiu correndo tão rápido que o máximo que eu vi foi um borrão cinza perambulando histericamente a nossa sala. Meu irmão pulou para cima do sofá, minha irmã começou a gritar e a gargalhar ao mesmo tempo. Meu pai dava risada e minha mãe ficou preocupada caso a Chila se enfiasse em algum canto e morresse depois. Ela se enfiou.

Foi embaixo do hack. Ficamos esperando que ela saísse durante vários minutos e nenhum sinal de vida. Na minha cabeça já havia se materializado a figura da Chila enforcada com os fios da tevê ou torrada, expelindo fumaça, por ter roído algum cabo elétrico. Pegamos a lanterna e iluminamos o fundo.

Ela estava lá, sentada, olhando para a gente com aqueles olhos negros de bolas de tênis...imóvel...

Meu pai enfiou a mão para pegá-la e o que se viu foi outra correria desvairada daquele roedor pela minha casa. Ela girava em círculos, rodopiava em torno de si própria como um peão adulterado. Meu irmão pulou no sofá novamente, eu e minha mãe ficamos parados com medo de pisar nela, minha irmã e meu pai se divertiam.

Não demorou para a Chila se meter embaixo do sofá. A fresta que existia entre aquele sofá e o chão era minúscula. Certeza que ela estava esmagada. Era o fim da Chila. Pobre Chila...

Nós cinco nos agachamos e espiamos entre o vão e o chão. Num súbito, ela disparou novamente, causando um rebuliço gigantesco no apartamento cinqüenta e quatro, da rua Major Freire número 358.

Minha irmã pulava, entusiasmada, gritando de excitação. Meu pai se juntou a ela.

“Cuidado pra não pisar nela!” – gritamos eu e minha mãe. Eu me referia à chinchila, mas algo me dizia que minha mãe estava mais preocupada com sua filha do que com nosso bichinho de estimação. Desnaturada!

Aquele corre-corre anárquico da Chila cessou quando esta se enfiou, novamente, embaixo de um móvel. O móvel do telefone.

Eu juro que me arrependi profundamente de ter aberto aquela gaiola. As únicas pessoas que estavam se divertido com o escape da Chila eram meu pai e minha irmã. Eu me amedrontava ao imaginar algum pé esmagando-a feito um bolinho e minha mãe estava só pensando na quantidade de cocos tic-tac que teria que caçar depois. Meu irmão já estava desaparecido.

“Alguém vai ter que pegar esse bicho...” – disse minha mãe.

Naquela época, sempre que era dito que alguém deveria fazer alguma coisa, isso significava que as coisas sobravam para o meu pai. Saudade daquela época...hoje sobra para mim.

Meu pai, forçadamente, se prontificou de agachar e enfiar, num raio súbito, seu braço e agarrar aquela fugitiva maluca. Ele fez.

“Puta que pariu!” – ele gritou, tirando seu braço de modo tão rápido como o colocou, chacoalhando sua mão exaltadamente. Ela o havia mordido.

Isso significou algo óbvio: meu pai agora estava revoltado por ter levado uma dentada do bicho e , conseqüentemente, fora da jogada. Sobrou para mim. Minha mãe tinha medo de se enfiar lá e proibiu minha irmã de tentar. Desse tipo de coisa ninguém me proíbe, né?

Tomei coragem. Olhei por debaixo do móvel e a vi. Seus olhos de bolas de tênis brilhavam. Parecia insano. Ameacei esticar o braço. Ela colocou os dentões para fora. As patinhas da frente estavam coladas, como se arquitetasse um plano diabólico.Ela ria para mim, parecia o coringa. Maldito roedor!

Hesitei. Recuei.

“Vai lá!”

“Ela está brava! Ela vai me morder!” – eu repetia.

“Vou pegar a vassoura” – disse minha mãe

“Não!” – retruquei.

“Posso tentar, mãe?” – perguntou minha irmã.

“Não!”

“Ahhh”

Caramba, deixa ela, mãe!

Resolvi tomar água, com a desculpa que tentaria de novo.

Não sei descrever o que aconteceu depois. Ouvi uma gritaria, uma muvuca de móveis se mexendo e em seguida sequiosas gargalhas. Saí correndo com o copo na minha mão.

É numa hora dessas que uma máquina fotográfica faz falta. Minha irmã, postada e rindo, segurava com a mão esquerda o rabo da Chila que, de ponta cabeça e todas as patinhas abertas, estava como se estivesse congelada.

“Estátua da liberdade!” – gritava minha irmã, imitando aquele presente francês dado aos nossos amigos das batatas imperialistas.

Depois desse dia,meus pais começaram a perder a boa vontade com a Chila. Meu pai inventou de dar o miolo da maça para ela que, ao ver a figura careca e nariguda do sr. Bertollini, pôs-se de pé e soltou um jato de urina em seu rosto.

“Filha da puta!”

Ela não durou muito tempo em casa. Quero ver agora quem vai dizer que chinchilas são sem graça!

Obs: A Chila não foi bem meu primeiro bichinho. É injusto esquecer o Pavarotti, o Leleco e o Bird, nossos passarinhos. Sem contar meus primeiros peixes, cinco peixes que ganhei no Shopping D na exposição do fundo do mar. Eles levavam o nome dos integrantes dos Mamonas Assassinas e também tiveram uma passagem meteórica pela minha casa. Um dia eu conto minha história com peixes....

sábado, 16 de agosto de 2008

Intermitências da dor

Clementino acordou no cortiço de Nenê
Que era sujo, inacabado
Fedorento e não pintado
Como próprio Clementino havia de ser

Era mais um dia de trabalho
Na labuta de enxada e pedra bruta
Desgastante seu labor
Que nem mais sentia dor

Clementino era magro cor da terra
O suor pendia à testa
Pele grossa a encrostar
Desatina sem pudor

Nasceu ao sol pungente
Onde não se cresce gente
Em berço de solo seco
Sempre soube o que era dor

Maceta aqui, maceta ali
E foi durante a macetada
Que conheceu Maria Dalva
A menina recalcada o fazia retrair

Clementino deixou-se apaixonar
Levando um tiro e um sopapo
Uma calcada de soslaio
Da doença que é o amor

Tomou coragem
E pra não perder viagem
Uma caixa de bombom
Clementino encomendou

Chegando a ela
Ele se apresentou
Embasado de ternura
Nosso herói se colocou

“Moça bonita, o que fazes tão sozinha?
Se quiseres companhia
E uma tarde de alegria
Clementino, aqui estou!”.

De cima abaixo, a rapariga o reparou
E como quem esmaga um sapo
A menina retrucou

“Olhe pra si, desleixado capial
Uma moçoila como eu
Que sozinha nunca está
Não se mistura com um tal”

Por trás dela, um mancebo apareceu
De mansinho e fino trato
Com olhos e nariz de rato
Clementino emudeceu

O mancebo era o Mário João
O rapaz era sinistro
Tinha mais pelo no umbigo
Que amor no coração

Amedrontado,Clementino se encolheu
Implorou um padre nosso
Mas Jesus estava ocupado
E Ele não o atendeu

Levou três socos e depois foi despojado
Num terreno abandonado
Catarrento e humilhado agradecendo o milagre
Por não ter sentido dor

Enclausurou-se no seu fundo
Magistral aquele mundo
Profuso e sem desejos
Que era cego, surdo e mudo

Pôs-se , assim, a caminhar
Sua vontade era achar
De qualquer forma algum lugar
Que pudesse celebrar
Sua vida de apatias eremitas
Sem qualquer perspectiva
Do que era boa história
Do que era boa vida

Andou mesmo que coxo
Sem critério e sem esforço
E avistou de jeito turvo
Ainda que com olho roxo
O dizer “Clementino, venha cá”

Era o bar a o chamar
O lugar a se instalar
A cadeira de madeira
Repetia “Clementino, venha cá”

Bebeu, cantou, dançou
O andarilho Clementino
Numa gingada estapafúrdia
Sem demorar se embriagou


Tomado por uma coragem jururu
Atirou-se na represa
Pondo fim a sua passagem
De enxadas e pedradas
Não sem antes agradecer
A Jesus Cristo Salvador
Por nunca tê-lo feito sentir dor.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

A Biblioteca

A pedidos da Carol...
(não, eu não esqueci! Espero nao lhe desapontar...)

____

O crepúsculo noturno iluminava, ainda que com a ajuda das luzes dos postes ofuscadas pelo voar ébrio dos cupins, a pequena porta de madeira da entrada do prédio.

O ambiente que, dentro de sua normalidade deveria ser inquietantemente silencioso, produzia um murmurinho incomum. Aliado a isso, o ranger dos tacos do piso polido e brilhoso do andar térreo, aglutinado ainda ao som sequioso dos livros folheados displicentemente por seus vorazes e desleixados leitores, que brincavam de estudar sobre pesadas mesas de metro, furavam-me os tímpanos sem pedir licença.

Aquele lugar, que por si só já transmite a idéia clássica de recanto intelectual dos sábios gênios insanos boêmios, refugava a idéia de biblioteca de um mundo contemporâneo.

Fria. Escura. Sua verticalidade era um túnel sem fim nem brilho no remate. Girando o pescoço via os janelões fitando-me, as grandes placas de vidro indagando-me se permaneceria parado naquele patamar. Olhei para cima e notei as estantes me convidando para desbravá-las, implorando que as desvirginasse, como lolitas holandesas em um pub nada familiar de Amsterdã.

Subi a escada de madeira vestida por seu pano vermelho aveludado. Entre uma parede de tijolos, senti o cheiro frio instalar-se nas traquéias e um gosto de barro me fez salivar. Deveria ser este o primeiro sentimento daqueles que ousam experimentar um livro antigo.

O piso de madeira lustrosa deu lugar a um carpete de plástico-bolha encorpado. A passada seca e bem humorada foi tomada por uma batida opaca. Meu nariz coçava. Rinite.

As estantes grudadas meio de lado, como que cansadas, nas enormes paredes de vigas transmitiam a idéia de esconderem um segredo antigo: a impressão era de que o mais novo dos livros fora lido por Carlota Joaquina de Bourbon para Pedro quando este ainda era uma criança.

Tocando um a um, sentia a viscosidade das capas grossas de couro; o pó batendo asas e pousando, pareceu-me de propósito, em minhas ventas largas.Nada estava ali por acaso. Todos retratavam um fato, uma história. Uma epopéia passada que há muito foi contada através de sábias linhas tortas.

Era como se eles falassem, suas bordas eram bocas desdentadas que suplicavam para serem abertas.

Senti frio. Um arrepio. Peguei-o. Abri-o. Uma nuvem de pó surgiu. Espirrei. Coisas que só uma biblioteca pode fazer.

domingo, 22 de junho de 2008

Papo de amigo

Já era visto como ritual. Todo sábado, os três amigos se encontravam no boteco do Tavares, a Tabula do Tavares. Chegavam relativamente cedo e só saiam carregados pelas esposas, já no domingo de manhã.

Conheceram-se na infância, e a amizade entre eles só se fortaleceu com o passar do tempo. Se amavam como irmãos.

- Vai pra puta que te pariu!

Assunto central das conversas na Tabula: futebol.

- O Botafogo é uma bosta! – gritou Tonico, já ébrio, para Dudu – Bostafogo! – concluiu após um arroto e uma gargalhada seca.

Tinha sido por isso que Dudu mandara o amigo para o lugar supracitado.

Helvécio, são-paulino, ria ao ver o camarada perder a compostura: xingue a mãe,a mulher e a filha de Dudu, mas nunca o Botafogo.

Tonico, ácido em suas colocações e provocativo desde pequeno (na terceira série, ameaçara bater na professora caso esta não aumentasse sua nota, jogando assim sua borracha na cabeça da mulher por ter rido dele. Foi sua primeira suspensão...), era convexo, bigodudo e não conseguia se ver fazendo outra coisa senão comer pães e atazanar a vida de Dudu. Era torcedor da Ponte Preta.

- O dia que seu time ganhar o primeiro título, você fala comigo! – retrucou.

- Filho da puta!

E era assim: sentavam, pediam a primeira rodada e era questão de tempo até surgir o assunto.

- Quem é você pra falar mal do Botafogo?! Quantos títulos tem seu time?

- Meu time é o mais tradicional do país, mais de cem anos!

- Cem anos fazendo rir! Ta que nem a Derci Gonçalves!

- Derci Gonçalves é a tua mãe, aquela macaca velha!

- Macaca velha é a tua mãe, aquele monte de pelanca!

- Olha como você fala da minha mãe, seu merda!

- Todo ponte pretano é filho da puta, vai se acostumando...

- Botafoguense é veado!

- Veado é são-paulino...

- Vão vocês dois dá meia hora de bunda! Meu time é tri...

- Tri bicha!

- Cala a boca!

- HAHAHAHAHA!!

- HAHAHAHAHA!!

- ...

- Ai, ai...

.

.

.

- ...acabou a cerveja...

- Chama o Tavares aí...

- OOO TAVARES!

- ...

- Vocês viram como está a filha do Estevão...?

- Ah, se não fosse filha dele...

- HAHAHAHAHA!

- Ai, ai...

- Hmmmm....

- Será que chove hoje...?


sábado, 21 de junho de 2008

Vamos Fazer um Filme?

Pra começar: aqui não tem formalidades! Geralmente...

Há muito tempo,e quando eu digo muito tempo é muito tempo mesmo, eu tinha uma vontade de manter alguma coisa perpetuando com carinho por aí. Pois bem...tomada a devida vergonha na cara, resolvi criar este blog e tentar (e quando eu digo tentar é...bom, deixa pra lá...) mantê-lo. Espero que ele não tome o mesmo fim que meu fotolog...

Na realidade, acabei concordando comigo mesmo que já estava na hora de compartilhar com os amigos meus textos e idéias, que vez ou outra eu escrevo num papel e passo pro PC, ou escrevo num papel e o perco.

O que eu vou colocar vem bem a calhar: ontem, niver da Ju, eu, Vitor, Gabriel, Ricardo e Natália saímos na tentativa de comemorar e tomar um pouco de cerveja com a aniversariante e uma rapaziada. No fim, celebramos o aniversário dela sem ela (é,vai entender...mas teve até brinde). Durante um gole e outro, surgiu o papo de uma coisa que eu me orgulho tanto de ter feito que virou um desses pensamentos guardados e depois escrito.

Quem me conhece e nunca estudou no Lumen comigo, já deve ter ouvido falar em algo como O Livro dos Dias. Quem nunca ouviu falar, digamos que essa é a hora. Até porque, todos tem o direito de saber um pouco sobre o fato que, definitivamente, mudou minha vida. Lógico, sob o meu ponto de vista...se bem que eu sou bem imparcial! =D

______

Tudo começou assim:

“Vamos fazer um filme?”. Confesso que gelei no momento em que a Thaís me fez essa pergunta, ao invadir minha carteira com um pedaço de papel em branco, apenas o nome dela assinado e um título no topo escrito “grupo”.

“OK!” respondi, meio achando que não ia dar em nada ou que o tal do filme não fosse sair. Assinei meu nome logo abaixo ao dela, com um garrancho incompreensível, me prontificando que de que minha árdua tarefa de escolher um grupo já estivesse completa.

Outras 12 (!) pessoas fizeram o mesmo abaixo do meu nome, alistando-se naquele que passou a ser conhecido como o-grupo-do-filme ou, numa visão mais pessimista da dupla chata daquela classe, o-grupo-dos-meninos-bagunceiros-que-vão-estragar-tudo-fazendo-um-filme-tosco.

O tempo foi passando, semanas para ser mais preciso, e o máximo que fizemos foi gravar as cenas iniciais com o João, durante uma aula de exercícios de geometria analítica. Faltava o resto.

E o resto demorou a chegar: para ser ainda mais preciso, ele apareceu durante um dos vários esporros (!) do Rogério durante sua aula de história, daquela vez por não reservarmos o retroprojetor para nossa própria apresentação sobre o Golpe de 64 e o governo Castello Branco.

Os dias passaram, viajamos para Porto Seguro, voltamos com a cabeça ainda na Bahia e eu e o Gabriel ainda fomos suspensos faltando duas semanas para a apresentação e nada do filme sequer começar a ser gravado.

“Será que isso vai dar mesmo certo?”, revezavam o Diogo e a Aline no ápice de suas preocupações. “Relaxa que vai, sim”, eu respondia numa falsa modéstia, acompanhado sempre do Ricardo que me ajudava a arquitetar cada passo daquilo que passou a ser chamado como O Livro dos Dias – um nome que, apesar da não ser de todo original (é o nome da última faixa, do último disco da Legião Urbana com o Renato Russo vivo), mas que veio a calhar com o propósito do projeto: retratar o futuro dos alunos do colégio Lumen Vitae, como um diário histórico que simboliza não apenas nossas vidas dentro e pós- colégio, mas como a de bilhões de terráqueos espalhados mundo a fora, apresentando-o para o restante da escola, incluindo nisso todos os alunos ,professores, funcionários, pais, avós e convidados numa data formal: a celebração dos 25 anos do Instituto.

“Pessoal, esse é o nosso TCC e, além disso, nossa despedida!” eu costumava dizer.

Até que deu certo. Tirando uma ou outra exceção, claro. Mas, na maioria, um ajudou o outro, superando seus próprios limites. É clichê, mas é verdade. O Gabriel chegou a desmontar o PC dele e ir até a casa do Ricardo para ajudar na edição. E foi em uma outra iniciativa dele que eu pensei “deu certo, conseguimos!”: horas antes da nossa apresentação, a gente fez uma roda e ele fez um sutil discurso de agradecimento a todo grupo, que se abraçou depois dos gritos de “aê!” e dos inúmeros palavrões proferidos. Detalhe: eles estavam p**** da vida conosco, por que eu, ele e o Ricardo decidimos não mostrar o vídeo que ficou pronto, definitivamente, um dia antes daquele 26/11/2006, para o restante do grupo. A intenção era, sem dúvida, a surpresa.

Surpresa, esta, que deu certo. A história sempre atemporal dos alunos que colhem no futuro o plantio feito na escola e que valorizam a essência do companheirismo e da amizade verdadeira, penetrou, fundo, não só o restante do curioso grupo excluído momentaneamente por um excesso de egoísmo intencional da nossa parte, mas também o restante do auditório que, em sua maioria, chorou e ,em sua totalidade, ovacionou em coro e uníssono.

Ficou testemunhado que, definitivamente, nós não estragamos nada. Muito pelo contrário. Afinal de contas, foi feito com o coração.

____

ps: Eu ainda coloco no youtube o trailer