sábado, 22 de agosto de 2009

A vizinha

Foram poucas vezes, é verdade. Mas já tinha sido o suficiente.

Eram vizinhos. E desde o momento em que ela se mudara para a casa ao lado, o garoto tinha mais que certeza que ali se encontrava o amor de sua vida.

Descobriu rapidamente coisas interessantes: ambos contavam dez, se chamava Mel e, assim como ele, era um tanto solitária.

O garoto não sabia se a vizinha confundia Frederico com Francisco, como a maioria das pessoas. De fato eram nomes diferentes, mas levando em consideração que seu apelido era Fred, o mais plausível a aceitar-se seria a primeira opção. Mas ele não cobraria isso dela. Nem teria como. Afinal, ninguém conhecia Fred melhor que ele mesmo.

O menino era estranho. Um tanto esquisito. Jogava vôlei sozinho contra o muro vizinho e geralmente perdia. Calçava pares diferentes de meias, cortava bife com colher, tomava sorvete com mostarda, seguia formigas com lupa pelo quintal e comia sabonete – gostava do cheiro. Mas tirava boas notas, conformava-se a mãe.

- É mania de gênio – dizia a avó, dona Godofreda – Todos eram esquisitos – completava sempre ao ver a filha irritar-se com o neto ao tentar explicar-lhe, pela vigésima vez na semana, que picanha se espeta com garfo.

Mas Fred não se importava. Que diferença faz o que uma velha com bereba no queixo acha de você? Seu objetivo era um só: ver Mel de perto. Sem muros nem plantas em sua frente, sem precisar se esconder para espioná-la na janela. Ficar frente a frente. Sentir seu cheiro. Tocá-la. Tentar falar com ela. Tentar.

Na primeira vez que Fred se apaixonou, ficara tão nervoso que vomitou ao declarar-se:

- Eu te am..... – vômito. Sentiu-se enjoado ao recordar-se. E desde então decidira que nunca mais se apaixonaria em vida.

Estava deitado em sua cama, contemplando o teto, cutucando o nariz. Pensava em Mel e no jeito que ela mudou sua vida. No jeito de andar, de se expressar. Lembrou-se de sua promessa e de como havia sido tolo de prometer a si mesmo uma coisa tão absurda. Por chegar a pensar em privar-se de uma dádiva humana, no verdadeiro milagre divino: o privilégio de sentir amor.

Ergueu-se decidido. É agora, pensou.

Vestindo seus tênis, não se preocupando com os cadarços desamarrados, pisou forte em cada degrau da escada, indo do primeiro andar ao térreo em poucos segundos. Passou reto pela mãe que lustrava um móvel, ignorando suas perguntas irritantes e habituais:

- Fred? Aonde você vai?

Falar com Mel, respondeu a si próprio.Dizer a ela tudo que ela me faz sentir!, esbravejou por dentro.

Saiu da casa e virou a direita. Em três passos ficou frente a frente à porta de Mel.

É agora!

Tocou a campainha. Pressionou o botão por mais tempo que o necessário até que a porta fosse aberta.

Uma figura mais ou menos do seu tamanho abriu a porta. Uma menina de bochechas cor de rosa, pele alva, cabelo ondulado e dourado.

- Oi? – disse a garota.

Fred engoliu em seco.

- Pois não? – retornou.

- Ahhh....

Ficaram se olhando.

- SeráqueeupoderiafalarcomaMel? – disparou.

- Ãh?

Não foi preciso repetir a pergunta. Ela estava lá. Ao fundo, observava intrigada. Caminhou devagar até a porta, com seu rebolado infalível. O coração de Fred disparou.

Mel encostou-se à porta. Centímetros os separavam. Sentiu a primeira golfada subir-lhe à garganta.

Rápido antes que fosse tarde demais e banhasse seu amor com aquilo que chegou a ser, horas antes, macarrão, a abraçou. Com força.

- Eu te amo – disse – Eu te amo! – disse mais alto.

Seus olhos expurgavam lágrimas honestas e salgadas. Sentia seu cheiro! Sentia seu coração disparar! Sentia o amor fluir em seu corpo!

- Sai daqui, menino! – disse a garota que lhe abriu a porta, dando um tabefe seco na cabeça de Fred – Solta ela! É minha...! Mãããe!

Fred a apertava com força. A menina a puxava para ela. Tornou-se um cabo de guerra. Mel gritou assustada.

- Ei, o que está acontecendo?! – pelo tom da pergunta, Fred percebeu ser a mãe. Afrouxou o braço, cedendo Mel para a garota que a abraçou, assustada – Quem é você?!

- Ele quer roubar a Mel! – denunciou a menina, apontando o dedo trêmulo para ele.

- Saia fora daqui, antes que te dê uns cascudos, seu moleque!

Fred fugiu assustado para longe dali, gritando para aquelas duas bandidas que elas não entendiam nada de amor. Mas deu-se por satisfeito por não ter vomitado e, principalmente, pelo seu momento com sua amada.

O que o entristecia era saber que teria que tentar convencer a mãe a comprar um cachorro que fosse obrigatoriamente idêntico a Mel, já que à própria a mãe se recusava a oferecer uma oferta.

domingo, 9 de agosto de 2009

O recado do homem público

O recado foi-me dado.Era uma voz mulata. Uma voz doce.
O recado, aclamado em forma de poesia, ao som dos coríntios e cantado à peito cheio, me atingiu num toque leve e sereno.
O recado, como quem não quer nada, voou em fumaça lenta e apossou-se de um corpo doído e uma alma corroída, assoprando nos ouvidos de terceiros como a sonata de um piano maestrado, com a desculpa do neologismo, para fazer-se ouvir aos surdos que não entendem sequer clareza da música que nos faz chorar.
Em seu palco, rodeado e orquestrado, o recado declamou:

Tarde aprendi que bom mesmo é dar a alma como lavada. Não há razão para conservar esse fiapo de noite velha. O que significa isso?
Há uma fita que vai sendo cortada, deixando uma sombra no papel. Discursos detonam.
Mas não sou eu quem esta ali, de roupa escura, sorrindo ou fingindo ouvir. No entanto, também escrevi coisas assim, para pessoas que nem sei mais quem são, de uma doçura venenosa de tão funda.
Não serei um poeta de um mundo caduco, também não cantarei o mundo futuro. Estou preso ao presente e olho os meus companheiros: são taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, observo a enorme realidade. O presente é tão grande! Não nos abastemos, vamos de mãos dadas.

Dei-me ao luxo de apenas concordar. Apenas concordar.

sábado, 27 de junho de 2009

Como um velho carnaval

Vem de um lugar que não conheço

Tamborila no meu peito

Um afluente de desejo,

De repulsa e de tormento

Como em um velho carnaval.


Grita a voz que desconheço

Impondo seu respeito

Com um sussurro matreiro

E eu atento em um silêncio sorrateiro

Como em um velho carnaval.


E de repente se mistura, se entende

Se escuta, compreende a beleza

Do chamado quieto e longo

Do seu verde doce olhar.


E não mais como um velho carnaval

Em que suspiro vira grito

E fraqueza é rebeldia

Eu atendo o seu convite:


Estendo as mãos, busco seus braços

Fazendo da folia e feriado

A hora certa de escutar a quietude

Da música que seus olhos me embalam a dançar

Como em um bom e velho carnaval...

terça-feira, 16 de junho de 2009

A última década

Eu estava me descobrindo. Não sabia como era. Todo mundo falava que era uma das coisas mais incríveis do mundo. O tipo de experiência única e que todo ser humano deveria experimentar um dia, nem que fosse no último.
Eu vivia aquilo com tanta paixão, com tanto entusiasmo, que eu mal acreditei quando meu pai me fez a proposta, um pouco antes da data supracitada – esta nova não me recordo – em uma noite fria.
- Quer ir ver a final no Palestra? – larguei a cabeça do meu irmão na hora – O Robson é afilhado de um cartola do Palmeiras e ele vai. Conseguiu quatro ingressos.Numerada coberta, linha do meio campo, pouco abaixo da cabine da Globo. Quer ir?
- P u t a q u e p a r i u! – eu tinha dez anos, mas tinha aprendido vários palavrões ao longo dos jogos que eu assistia, sempre nervoso.
O gozado é que, quando pequeno, muito tempo antes do convite, detestava futebol. Achava um saco. Não sabia jogar, era caneludo, grosso, mole. Até que um dia me colocaram embaixo do gol. Foi nesse dia que a minha vida mudou.
Meu ídolo tinha passado a ser Velloso, o–melhor–goleiro–do-mundo. Leão, Oberdan e Valdir de Moraes,mitos. Sérgio, um excelente reserva, campeão com o time durante vários outros anos. Sabia que em todo time tinham três goleiros. Veloso, o titular. Para mim, imbatível. Sérgio, o reserva de luxo. Mas na ordem, era o terceiro.
- Ué? Quem é o outro? O segundo? – perguntei.
- Marcos – meu pai havia respondido. Eu deveria ter na época 09 anos recém completados.
- É bom?
- É – respondeu, como quem diz as horas. Não havia sentido muita firmeza. Meu pai reparou em minha cara de interrogação e complementou – Acho que sim, nunca o vi jogando.Todo goleiro do Palmeiras é bom.
Desde então, quando virei goleiro – e, modéstia a parte, dos ótimos – me tornei um viciado. Uma enciclopédia alviverde. Passei a acompanhar passo a passo da equipe: via todos os jogos que passavam na tevê, ouvia no rádio, fazia promessa, não escrevia no caderno com a caneta preta em dia de clássico com o Corinthians e usava e abusava do verde quando o Palmeiras jogava. Mas nunca tinha ido a um jogo. Tinha até chorado uma vez, quando fomos eliminados do Brasileirão de 1998, nas oitavas ou quartas de final, não me lembro, pelo Cruzeiro, em pleno Parque Antártica.
- Quando você for mais velho, eu te levo num jogo.
Que quando eu for mais velho, o quê! Eu quero ver o Velloso pulando de um lado para o outro, eu queria ver se aquele cabelo do Oséas era de verdade, o Paulo Nunes causando, o Alex comandando o time com aquela maestria irrefutável, o Arce colocando a bola aonde ele quisesse e até o Junior Baiano fazendo cagada. Eu queria ver meu time, o quanto antes.E naquela hora, quando o convite me foi feito, eu não tive a menor dúvida.
Eu não tinha crescido muito desde a promessa do meu pai. Teria a chance de ir ao meu primeiro jogo de futebol, justamente a final do mais importante torneio da América.
Meu pai havia combinado comigo que me buscaria mais cedo do treino, iríamos para casa jantar e logo após partiríamos rumo ao Palestra Itália. Foi o que se foi feito.
Minha mãe tinha medo que eu fosse com a camisa do time por causa de “brigas-com-a-torcida”.
- Pelo amor de Deus, só vai ter palmeirense! – dizia meu pai.
- Ta, mais coloca um casaco por cima.
Como eu não tinha muita escolha e era pequeno, acatei. Coloquei um blusão grosso e quente. No fundo, eu gostei. Tremia tanto que não sabia se era de frio, como de fato estava naquela noite, ou de nervoso.
Buscamos o Robson, afilhado do cartola que agora eu não faço idéia de quem seja, e partimos de vez ao estádio.
Eu fazia idéia já que a noite me proporcionaria fortíssimas e inesquecíveis emoções. Apenas não sabia que seriam tão fortes assim.
A primeira coisa que aconteceu quando paramos o carro em frente ao posto da rua Turiassu foi ouvirmos uma gritaria ensurdecedora. Eu saí do carro e olhei assustado para trás, que era da onde vinha a algazarra. Mal tinha conseguido assimilar o que estava acontecendo, meu pai puxou meu casaco e me arrastou para trás de um poste, onde pressionou seu corpo junto ao meu, conforme um escudo.
- Não se mexe! – ele gritou
Eu não me mexeria mesmo, não dava. Mas não resisti. Eu tinha que saber o que estava acontecendo. Coloquei a cabeça para o lado, por baixo do braço de meu pai.
Vi uma matilha alviverde correndo desvairada, jogando pedaços de madeiras e atirando rojões coloridos contra a cavalaria da polícia militar, que respondia atirando com armas de bala de borracha. Conforme eu descobri no dia seguinte, foram vendidos mais ingressos que o real suporte de estádio e, praticamente todos,eram falsos.
Eu me desesperei na hora. Já comecei a imaginar um monte de tragédia.

Menino de dez anos é baleado e não vê o time ser campeão” ou pior, “Menino de dez anos é baleado e Palmeiras perde!

Mas, como Deus é pai também, não fui baleado. Entretanto, meu pai e o Robson, que até hoje eu não sei onde foi parar na hora daquela confusão, resolveram entrar do outro lado do Palestra Itália, pela Matarazzo.
Cacete, já eram quase nove e meia e a gente ia demorar um tempão pra conseguir entrar. Iríamos perder no mínimo uns dez minutos de jogo.
Como eu costumava ser, e ainda sou um pouco, dramático, a gente não perdeu absolutamente nada.Entramos pelo outro portão a tempo de ver os jogadores perfilados cantando o hino nacional.
Era uma gritaria e uma intensidade tamanha que eu conseguia ouvir meu coração batendo. Me arrepiei ao olhar para a Mancha Verde pulando, gritando, milhares de bandeiras balançando de um lado para o outro, rojões de luz verde acessos e um estardalhaço de palmas que tornavam o Hino Brasileiro um mero coadjuvante desapercebido.
Chegamos ao nosso setor, as numeradas cobertas. Já devidamente acomodado pude vislumbrar decentemente os jogadores naquele palco verde. Estavam todos lá: Felipão, Arce, Júnior Baiano, Roque Júnior, Júnior, César Sampaio, Rogério, Galeano, Alex, Zinho, Oséas, Evair, Paulo Nunes, Sérgio, Euller...e ele. Ele!
Ainda admirava o Velloso, mas uma pessoa em especial estava se tornando, a cada dia que passava, algo magnificamente fora de série, um ídolo inquestionável, um cidadão que tinha tudo para tornar-se naquela noite, como em outras passadas, um herói santificado. Seu nome: Marcos.
Seu primeiro jogo contra o Corinthians foi, sem dúvida, a melhor atuação de um goleiro que já presenciei em toda a minha vida.
- Eu não estou acreditando – meu pai disse na ocasião, quando o goleiro defendeu uma bomba do Marcelinho, no segundo tempo. Eu sequer consegui responder. Estava de boca aberta.
Não estou exagerando. Todo palmeirense e corintiano que se lembra daquele jogo sabe o que estou dizendo. A consagração foi na semana seguinte: pênalti do Vampeta defendido.
Com esse nome, ele só pode ser santo! – exclamava Galvão Bueno – São Marcos!
O apelido pegou e dura até hoje. Desde então, depois daquele dia fatídico, a cada jogo, um milagre atrás do outro. Defesas humanamente impossíveis. Vasco da Gama, River Plate..era inacreditável.E não só pela Libertadores, como também pelo Campeonato Paulista e pela Copa do Brasil, cujas competições o Palmeiras disputava simultaneamente e chegado até as finais nos três campeonatos.
Eu já estava achando tudo o máximo, mas quando eu o vi, com sua camisa azul prateada, ao lado do Sérgio com a sua azul amarelada, eu finalmente disse:
- Caralho!
Não demorou muito, o juiz já havia apitado o início do jogo e, tão rápido como seu começo, veio outra notícia: um senhor havia morrido na arquibancada.Enfartou. E a partida nem tinha começado! Que noite era aquela!
Até hoje fico pensando se o senhor suportaria as coisas que eu assisti: no primeiro tempo, bola na trave de Roque Júnior e gol anulado do Oséas, entre outras coisas, além de uma defesassa do Marcos num chute do Bonilla. Terminou zero a zero.
Eu tremia de nervoso. Meu pai me oferecia no intervalo amendoim, sorvete, pipoca, salgadinho...não passava nada pela minha garganta, que estava tão seca que eu cheguei a pensar que minhas glândulas tinham parado de produzir saliva.
O segundo tempo começou e minha agonia durou pouco mais de 16 minutos: Felipão tinha tirado o Arce e colocado o Evair. Na hora eu fiquei puto, por que eu sempre achei o paraguaio foda. Mas sempre vi o Evair como gênio. O Rogério foi deslocado para a lateral direita e cruzou uma bola daquele lado do campo. O Paulo Nunes escorou para o meio da área, direto na cabeça do Oséas que arrebatou. O zagueiro colocou a mão na frente para evitar aquilo que seria o primeiro gol e o juiz não teve dúvida: pênalti.
Eu pulei tão alto, agarrei meu pai ao meu lado e um cara que eu não conhecia. Gritava de euforia. Mas a agonia voltou. O Arce tinha saído, quem vai bater? E se errar? Eu estava histérico!
Vi o Evair ajeitando a bola e meu coração disparava.
- O Evair faz! O Evair faz!– gritava meu pai, talvez mais nervoso do que eu, por que não havia necessidade de ficar gritando aquilo, daquele jeito, e repetidas vezes.
Ele tomou distancia e bateu. Coloquei a mão na boca em forma de súplica. Goleiro de um lado e bola do outro. Gol!
Gritei, pulei, agradeci aos céus, xinguei um monte de gente. Faltava mais um.
Lembra no começo do texto que eu queria muito ver um jogo, nem que fosse pra ver uma cagada do Júnior Baiano? Então, ele fez.
Um carrinho criminoso e desnecessário dentro da área. Pênalti.
Zapata bateu e fez. Bola de um lado, Marcos do outro. Gol.
O estádio emudeceu por alguns segundos. A Mancha começou a puxar um grito de incentivo que contagiou a todos e, em pouco tempo, agíamos como se não tivesse acontecido nada.
Passou pouco tempo e o Oséas desempatou. Boa jogada do Júnior pela esquerda, tabelinha com Euller, cruzou na área e caixa. Dois a um.
Desse jeito, a conquista seria decidida nos pênaltis. O tempo foi passando, minha agonia foi crescendo. Para piorar: os colombianos faziam uma cera grotesca e irritante e, de cabeça quente, não lembro o que o Evair fez e acabou sendo expulso.
O jogo terminou. Foi como se tivessem despejado um balde de gelo em cima de mim. Meu nervosismo crescia ainda mais.
Na boa...penaltis?! Final de Libertadores?! Do jeito que eu estava?! Eu não conseguia pensar em coisas boas...Na minha cabeça veio o Palmeiras perdendo em pleno Palestra, aquele bando de colombiano fazendo festa na nossa casa e meus amigos me zuando na tarde seguinte.
Eu tinha que fazer alguma coisa. Eu precisava ir ao banheiro.
- Você ta falando sério?! – perguntou meu pai, incrédulo.
- Aham!
- Não dá pra agüentar?!
- Não!
- O banheiro fica longe e é nojento...
- Pai!!
Ele me levou a contragosto. Descemos a arquibancada inteira, passamos pelo tiozinho que toma conta do portão e entrei no banheiro.
- Cuidado aonde você vai pisar!
Eu não tinha dado muita atenção, mas depois percebi o motivo do aviso.
O banheiro era uma piscina. Eu mesmo vi dois caras fazendo xixi no meio do ambiente, por preguiça de ir até a privada. Eu fui até o mictório e comecei. Fechei os olhos e comecei a rezar.
Mais falei sozinho do que rezei. Que era injustiça o Palmeiras perder, que os caras do Deportivo não mereciam por causa da catimba e que também não era justo comigo. Um papo assim.
Sai correndo, encontrei com meu pai do lado de fora e subimos de volta aos nossos lugares.
Não tínhamos idéia de quem seriam os cobradores. Só vimos que começaria conosco e que quem abriria a série era o Zinho.
Foi uma das sensações mais estranhas que já senti. Um misto de pavor e esperança, um arrepio frio. A bola explodiu na trave.
Era como se toda a felicidade tivesse sido exaurida de cada um daqueles trinta e cinco mil torcedores. Eu ouvi um suspiro longo, único e um silêncio arrebatador. Aquele silêncio esmagou meus ouvidos. Foi impressionante. Eu juro ter ouvido o som da bola quicando no chão, os gritos de alegria dos jogadores adversários e as passadas lentas e tristes do nosso ex-camisa 11.
Logo em seguida, o goleiro Dudamel fez um a zero.
O Júnior Baiano foi o segundo.
- Júniro Baiano?! – meu pai e o Robson gritaram, desesperados.
- O Felipão deve saber o que está fazendo... – falei.
- É...
Ele bateu mal pra caramba. Mas a bola entrou. E pênalti bem batido é aquele que entra. E outra: ele não teria coragem de fazer duas cagadas num jogo como aquele.
Roque Júnior e Rogério marcaram logo depois, e a série estava igual: três a três.

Marcos não pegou os dois pênaltis seguintes por muito pouco. Mas eu tinha esperança que aquele quarto era dele.
O colombiano chutou e acertou a trave. Eu pensei que ele tivesse defendido. O estádio foi abaixo. Eu levantei as mãos ao céu e agradeci. Precisávamos desempatar e torcer para que eles errassem o seguinte.
O Euller correu que nem uma gazela empinada pra bola e bateu com uma maestria e frieza esplendorosa. O estádio veio abaixo pela segunda vez.
Pronto! Agora é com você, Marcos!
O estádio gritava em coro o nome do goleiro e, em seguida, Fora! Fora!
Eu me sentia gelado. Nervoso. Arrepiado.
Zapata tomou distância e bateu.
O mundo parou por alguns instantes. Vi, em câmera lenta, o Marcos pulando para um lado, enquanto a bola corria para outro. Fodeu, pensei.
Depois pensei que a bola tivesse furado a rede, quando a vi batendo nas placas de publicidade atrás do gol – meu nervosismo é um tanto quanto pessimista, eu sei. Ainda tento melhorar.
Mas a gritaria que se estendeu depois me fez perceber que não havia mais motivos para ficar nervoso. Vi o Marcos correndo para a torcida com os braços estendidos, o Felipão pulando no banco e uma multidão de verde e branco em histeria na minha frente.
Fiquei parado. Estático. Catatônico. Demorei a acreditar, a perceber o que estava acontecendo. Só me mexi quando meu pai puxou minha gola do casaco e gritou:
- É campeão! É campeão! Puta que pariu, é campeão!
Tinha sido a terceira vez que o Palestra caíra abaixo. A segunda em que chorara em um jogo. E minha primeira em um estádio de futebol.

sábado, 7 de março de 2009

Crença Pós-Moderna

Deus havia sido morto. Assassinado inescrupulosamente.

Ao matá-lo, o vulto negro pregou os novos mandamentos:

1- Torturarás animais dóceis e indefesos por puro prazer e satisfação;
2- Roubarás doces de crianças indefesas e acusarás o próximo como responsável pelo choro do primeiro;
3- Estourarás as escritas em braile referentes aos andares dos prédios, em elevadores comerciais e residenciais;
4- Incentivarás pessoas influenciáveis e de índole frágil a cometerem suicídio;
5- Matarás sem medo nem culpa.

E pregou a nova reza:

“Oh, incomensurável vontade de matar, desça até mim o feixe negro da podridão e amaldiçoe até a última gota branca do meu órgão pulsante, destruindo a pútrida brega bondade do homem e florescendo os espinhos de sangue..."

E o povo rezou. Completando com amém.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O Homem da Tesoura

Sexta-feira, 13.

Rezende depara-se, assustado, com a manchete principal de O Popular:

Homem da Tesoura escapa da prisão


Responsável pela morte de dezenove pessoas nas últimas semanas, nove homens e dez mulheres, o Homem da Tesoura escapou da prisão na tarde desta quinta feira (12) por volta das 15:15 e permanece foragido, desde então.

Otaviano Olinda (foto), 33, conhecido como o Homem da Tesoura por cortar os membros masculinos e enfiá-los nas bocas de suas vítimas (no caso das mulheres, arrancava os mamilos) e ainda picotar todos os dedos com uma tesoura de jardineiro, fora preso na noite desta segunda-feira por aquele que por pouco não tornou-se sua vigésima vítima e décimo homem, o dermatologista Clarindo Nunes, 63.
O médico afirma ter conseguido escapar do assassino após golpeá-lo na cabeça com um pedaço de ferro, jogado à rua.

Frio e inexpressivo, Otaviano relatou à redação de O Popular que sentia-se tranqüilo quanto a sua pena e seus crimes, e que não sentia-se culpado pelos atos vis cometidos:

“Não me arrependo de nada” era o tipo de resposta, aparentemente ensaiada, que Otaviano pronunciava a qualquer tipo de pergunta efetuada pelos diversos jornalistas presentes na coletiva realizada na vigésima delegacia de polícia, Centro de São Paulo. “Durmo tranqüilo”.

Provado clinicamente seus transtornos bipolares e psicóticos, Otaviano passou a apavorar a cidade quando se deu a bizarra notícia de mãe e filho, Maria Lourdes (40) e Mario João (10), encontrados devidamente mortos com as marcas supracitadas, em plena Marquise do Parque do Ibirapuera. Desde então, casos idênticos ocorreram em intervalos de tempo semelhantes durante este mês de outubro.

“Tinha medo de sair de casa” afirmou a professora Silvana Arantes à época.

A fuga do Homem da Tesoura está sendo averiguada pela polícia, que ainda o procura incessantemente desde quinta. “Não vou desistir até colocar este assassino atrás das grades novamente”, afirma, veemente, o delegado Pigarço. “Ele é um doente, altamente perigoso, incapaz de distinguir o certo do errado, perigosíssimo para a população paulistana. Não admito um selvagem deste solto”.

Quando perguntado qual seria seu maior temor, o delegado Pigarço foi franco: “Temo que Otaviano esteja à procura de um homem. Ele admitiu-se desgostoso com o fato de não ter conseguido matar o mesmo número de homens e mulheres”

Restante da matéria: 3b,4b,5b e 6b.

Rezende não chegou a ler as outras páginas. Jogou o calhamaço de papel sobre o banco ao lado, ao modo que a foto estampada de Otaviano o encarasse: seus cabelos aparentemente sebosos soltos, o nariz adunco, sobrancelhas grossas, olhos amendoados, a pele clara e a pinta sobre a bochecha direita riam cinicamente para o leitor apavorado.

Incomodado, Rezende preferiu voltar sua atenção para o cafezinho no copinho de isopor que esfriava. Tomou tudo em um gole só, o que fez arrepender-se, ao reparar que o líquido não estava tão ameno assim. Amassou-o, enfiando-o de qualquer jeito no saquinho de lixo pendurado no câmbio de seu Corsa 98, girando a chave na ignição do automóvel.

Deu a partida e resolveu começar sua labuta o quanto antes. Sua vista, que já não era das melhores, mas raramente o enganava, o avisou, sem pormenores, que em breve choveria. E forte.

*

Chovia. Forte.
Uma cortina prateada engolia o Corsa 98 de Rezende de maneira presunçosa, como se estivesse brincando com ele de maneira a irritar.

Rezende não havia conseguido muitos clientes naquele dia tempestuoso e friorento. As calçadas estavam vazias de gente enquanto as ruas se encontravam completamente congestionadas: o que seria um excelente motivo para faturar-se alto, acabou tornando-se uma completa perda de tempo. E de gasolina.

Entretanto, sua vista cansada, porém eficiente, mesmo com aquele turbilhão de água que caía do céu, o denunciou aquilo que poderia ser um cliente.
Notou que era um homem agasalhado com uma capa de chuva amarela, braço direito estendido para que o taxista o visse enquanto o esquerdo segurava uma maleta de ferro.

Rezende buzinou ao passar pelo rapaz, parando o carro mais a frente, visto a impossibilidade de estacionar o velho Corsa frente a um bueiro entupido.

Parou na esquina. Pelo retrovisor, enxergou o homem correr apressadíssimo até o carro, evitando atolar suas pernas em buracos ou encharcá-las de vez em alguma poça de água. Destravou as portas ao vê-lo aproximar-se.

- Tarde – disse Rezende, gentil, ao ter certeza de que seu cliente já estava devidamente confortável no banco traseiro.

- Efigênio Duarte – respondeu.

- Pode me chamar de Rezende. Prazer – retrucou simpático.

- É a rua... – disse o homem de maneira óbvia – Vai pela ponte, por favor.

- Ah, sim...

Silêncio.

- Que chuva, hein? – disse Rezende após longos minutos de mudez, vidrando os olhos no retrovisor e olhando para o homem.

- É...

Silêncio novamente. Todavia, Rezende prosseguiu com sua vista pousada no espelho.Ele não me é estranho, pensava.

Desde então passou mais tempo com os olhos erguidos, tentando decifrar a figura ensopada no banco de trás, do que olhando para frente enquanto dirigia.

Farol vermelho.

Rezende freou o carro colado com o da frente. Notou que o passageiro passou a perceber os olhares furtivos, incomodando-se. Tirou os olhos do espelho com rapidez, tentando disfarçar, pousando-o em qualquer canto que fosse. Inconscientemente, seu rosto girou para seu lado direito, guiando seus olhos até o calhamaço de jornal jogado no banco ao lado. Foi quando percebeu que o nariz adunco, a barba rala e o cabelo seboso do passageiro não eram apenas fruto de lembranças de uma vida passada.

Rezende gelou. Da cabeça aos pés, sentia frio. Um gelado angustiante e pesado o fazia tremer as mandíbulas.

Minha Nossa Senhora! Não pode ser! O Homem da Tesoura aqui atrás! Dentro do meu carro! pensava.

O farol abriu meio que de repente, e Rezende por pouco não deixou seu Corsa 98 morrer, fazendo-o andar trepidante.

As ruas giravam. A impressão que tinha era que não demoraria tanto para algum carro se enfiar dentro de seu pára-brisa. Atordoado, começou a suar.

- Ei! – gritou o passageiro.

- Ah?! – respondeu Rezende, perturbado.

- Fica na faixa da ponte! É pra você pegar a ponte! – Rezende deu seta e andou na faixa certa.

Assassino! Miserável! Maldito!

- E vê se vai rápido. Tenho...compromisso.

Acelerou. Não posso deixar isso acontecer! Esse assassino vai matar mais alguém! E se eu não fizer nada, a próxima vítima serei eu. Acelerou ainda mais, ultrapassando os carros a sua frente despretensiosamente. Você matou crianças! . Suor. Destruiu famílias! . Apertava com força o volante. Destruiu sonhos!. Cento e vinte quilômetros por hora.

- Vai com calma, velhote!

- O que é que você tem aí nessa mala?! – perguntou gritando, a garganta doendo e os olhos ardidos. Acelerou ainda mais.

- Que te interessa?! Diminui aí, velho do caralho!

- Abre essa mala e me mostra o que você tem dentro dela! – gritou ainda mais, a plenos pulmões, voz rasgada e olhos vermelhos, lacrimejados.

Instantaneamente, o homem abriu a maleta e arrancou aquilo que fez Rezende urrar de fúria, erguendo uma enorme tesoura de jardineiro.

- Ta satisfeito, velho de merda?! Eu não vou pagar essa corrida! Agora anda direito antes que eu te arranque o pau fora!

- Seu monstro! – Rezende enfiou o pé no acelerador como se estivesse pisoteando uma jaca.O carro deslizava com ignorância rapidez .

- PÁRE!! – gritou desesperado, erguendo a tesoura sobre a cabeça de Rezende.

Pelo retrovisor, o taxista reparou naquela arma apontada para seu cocuruto e seguiu seu instinto animal de sobrevivência.

Girou volante completamente para a esquerda. O carro virou com esplendorosa força, arrebentando a guia que separava dos motoristas o abismo com água no remate.

Rezende fechou os olhos e largou o volante, abrindo os braços, como se estivesse mergulhando em uma piscina de água funda, ou se entregasse de corpo e alma àquele que mais confiava no planeta.

Os gritos reverberavam de maneira lenta. Leve, Rezende desdenhou rindo daqueles que se gabavam por andarem de avião. Até chegou a pensar nas asas invisíveis de seu simpático Corsa 98, que o levaria da terra à água, da sombra à luz, do anonimato à eternidade.

*
Antes de embrulhar o peixe, o feirante lê com esforço a notícia principal da primeira página de O Popular.


O Fim da Linha

Foi preso em flagrante, ontem, às 21:35, Otaviano Olinda – O Homem da Tesoura – após assassinar o dermatologista Clarindo Nunes.

Otaviano fora rendido enquanto executava seu ritual pós morte...

- Esse sim ficou na mão – disse para si mesmo, já cansado de ler a notícia em letras miúdas do jornal, deixando cair ao chão a nota que dizia a respeito do táxi que perdera o controle na ponte Itamar Franco e afundara-se no rio sob o viaduto. A perícia suspeita de aquaplanagem.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Do Espírito

Eles eram apenas palavras
Que a nada respondiam
Eles eram apenas perguntas
Vazias e fúteis, eu dizia
Mas veja como eles somem
Quando você está longe daqui

Todos sabem aonde isso acaba
E me perdoe por dizer
Por fazer-lhe perceber
Que corações não se combinam
E que a saudade não se arrasta
Aonde quer que você vá

Dançando junto ao céu
Não crê que punho cego
Sem limite rasga o véu

E mesmo assim goza da vida
Em um sorriso embriagado
Esquecendo dos problemas
Se propondo a voar
Afinal o mundo é seu
Quando se aprende a amar