quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O Açougueiro

O mais desavisado jamais perceberia que aquela porta branca espremida entre uma padaria e a loja de quitutes era um açougue. Mas não havia nada mais tradicional no bairro que o Açougue do Seu Paulo. Simples e folclórico.
- Dia, Seu Paulo.
- Dia!
Era costumeiro. As pessoas poderiam deixar de cumprimentar a própria mãe em frente aquela porta, mas ninguém deixava de felicitar o bendito do Seu Paulo.
- Que Deus lhe abençoe, Seu Paulo! – exclamavam.
- Pelo visto o churrasco foi bom, então? – ele exalava cordialidade.
- O melhor! Obrigado! Não existe carne como as daí!
Simpático, Seu Paulo recebia os cumprimentos exagerados com o mesmo bom humor de sempre, já conhecido desde que fugiu dos Pampas e se instalou naquela rua pacata no princípio dos anos sessenta.
O segredo do sucesso? O corte.
- Essa aqui – apontou a um novo cliente embasbacado – é a minha varinha de condão – terminou, retirando um facão e exibindo-o com cuidado – A Gaúcha.
- É linda!
- E você não tem ideia do que essa belezinha é capaz de fazer.
Como todo bom mágico, Seu Paulo não entregaria o segredo em uma bandeja recheada de fatias de picanha temperada no alho torrado, rodeadas de linguiça apimentada e filezinhos de alcatra mal passada. A experiência lhe permitia aguardar certas artimanhas a fim de tornar o espetáculo ainda mais suculento, e alguns truques ainda mais gostosos.
Guardava a faca no estojo quando sentiu uma pontada no ouvido. Uma pontada aguda, irritante. Era como se o seu tímpano fosse cutucado por uma agulha e lóbulo da orelha puxado para baixo. Cerrou os olhos. Viu seu novo fã distanciar-se do balcão e tomar um rumo sabe-se lá para onde, trombando nela. Ela.
Ah, aquela mulher. Dona da voz mais irritante que Seu Paulo tivera o desprazer de conhecer durante todos os seus sessenta e quatro anos muito bem vividos. O mundo poderia acabar, e a última coisa que Seu Paulo teria certeza que ouviria antes da explosão final do Apocalipse seria aquela voz nojenta e estridente.
- Seu Paulo – disse, meio que gritando meio que apenas falando muito alto.
- Dona Ana – respondeu, coçando a orelha – A que devo sua honra? – perguntou, sem se interessar de fato com a resposta.
- Você insiste nas mesmas perguntas, não é Seu Paulo?
- E você nas mesmas visitas...
Dona Ana ignorou e arrancou um papel da bolsa, colocando-o sobre o balcão. Seu Paulo conhecia aquele papel de cor e salteado. A bendita Ordem dos Vegetarianos do Bairro.
- Minhas visitas até esse seu IML a céu aberto já estão me cansando, Seu Paulo...
- Poupe-se...
-... Não me agrada nem um pouco pisar aqui dentro e respirar esse ar sujo de sangue e admirar essa paisagem horrorosa que você me proporciona...
- É só não entrar...
Dona Ana continuou a falar o mesmo sermão habitual, o que fez Seu Paulo voltar à sua rotina de trabalho como se nada estivesse acontecendo. A mulher falava as mesmices de sempre, acompanhada das irritantes manias que carregava consigo, como o nariz de porquinho, o vestido de praia amarelo que cobria o corpo atarracado e os cabelos tingidos de loiro-verde que, de tão maltratados, pareciam uma peruca de palha. A perua era chata demais.
- ... Por isso, Seu Paulo, a Ordem já entrou com mandato para o fechamento desse seu estabelecimento imoral...
- Dona Ana – disse, após suspirar e jogar um enorme pedaço de maminha sobre o balcão. Gotas de sangue voaram no busto da mulher. Tinha sido de propósito – Com o perdão da palavra, mas já deve ser a vigésima vez que você aparece aqui com essa ladainha – falou, impaciente – E eu gostaria de saber se essa porcaria de Ordem, que só você faz parte, importuna todos os açougueiros da cidade ou eu sou o único que você pega no pé.
- Isso é uma causa, Seu Paulo. Não é nada pessoal. O que eu quero é cortar o mal pela raiz!
- Pela raiz? – Seu Paulo estava curioso.
- Eu vejo a maneira como você dissemina esse mal, induz as pessoas a devorarem essa carniça como se fossem selvagens...
- Tá bom, Dona Ana, com licença... – respondeu, impaciente. Apanhou o pedaço de maminha do balcão.
- Não faça de conta que não me escuta! – Seu Paulo sentiu o braço ser puxado com um pouco de força.
- Por favor, Dona Ana, me solte.
- Escute o que eu tenho para falar – disse. Em seguida, gritou.
Aquele som! Aquele berro! Uma onda lhe invadiu as orelhas. Sentiu um corte no cérebro. Foi como se as sinapses entrassem em colapso. Os braços tremeram, as mãos fraquejaram, a boca secou. E a carne caiu ao chão.
O açougue ficou mudo por alguns segundos. Perplexo, Seu Paulo não conseguiu se mover. Foi como se seu corpo estivesse preso a pesadas correntes. Deixou a vista agir por si própria e viu o pedaço de maminha estirado no piso de lajota.
Era tudo o que não precisava. Foi tudo muito rápido. Viu Dona Ana apanhar o celular da bolsa. Fotografar a cena. Sumir rindo.
Correu para a peça de carne e a ergueu, rapidamente. Assoprou, tirou a poeira. Abraçou-a.
O dia seguinte veio com mais rapidez que o costume. Viu cartazetes colados nos postes, nos muros, na porta do próprio açougue. Todos estampavam a pobre maminha caída.
“É esse o lixo que você come” emplacava os papéis.
A freguesia diminuiu. Os clientes sumiram. O dinheiro evaporou.
Por mais que Seu Paulo tentasse se explicar, ninguém o escutava. Ninguém acreditava na versão do bom e velho Paulo, o homem que saiu dos Pampas para vencer na cidade grande.
- Foi um acidente! Uma fatalidade! – gritava.
Via Dona Ana apontar o dedo e rir com força da sua desgraça.
- Seu Paulo, me perdoe – disse Dona Ana ao passar na sua frente – Mas contra fotos não há argumentos.
- O que você fez é maldade! – exclamava, com a fraqueza da derrota na voz trépida.
- O que eu fiz foi por um bem maior!
Bem maior? Ninguém deixaria de comer carne por causa do fechamento de um açougue! Bruxa! Covarde! Calhorda! Desgraçada!
-E escute aqui, de uma vez por todas, seu açougueiro falido! Eu acho ótimo tudo isso que aconteceu! Eu não aguentava mais a fumaça das churrasqueiras invadindo meu quintal, o cheiro de carne assada pelas calçadas e impregnando as roupas do meu varal! Essa gente reunida cantando até altas horas por causa das porcarias que você vende! – Dona Ana falava cada vez mais alto, como um político em época de eleição. Gesticulava os braços, rodava o dedo em riste – Seu Paulo, aceite: ficaremos bem melhores sem você!
Seu Paulo refugiou-se dentro do seu estabelecimento. Bateu a porta e trancou-a, com força. Tremia. Ele não merecia ouvir aquilo. Não mesmo.
Nunca mais foi visto na rua. Nunca mais ouviram notícias suas. O açougue nunca mais foi aberto. Seu Paulo tinha, definitivamente, sumido do mapa.
Foi Alberto, um dos inexpressíveis moradores daquela redondeza, quem o encontrou, anos depois, nesses incalculáveis percalços da vida. Era uma cidade pequena, no interior, quase na divisa com Minas Gerais. Faltava carne para o churrasco.
- Seu Paulo?!
- Grande Alberto! – respondeu, surpreso, atrás do balcão.
- Mas que maravilha!
- E o que lhe traz aqui?
- Comprei uma fazenda. E o senhor? Desapareceu, homem!
- É, resolvi mudar os ares... Você lembra...
- Claro...
- Pois é...
- Mas você sabe que a Dona Ana também sumiu, né?
- Bah! É mesmo? – perguntou interessado, depois de arquear as sobrancelhas.
- Depois daquele incidente. Fez um projeto para abrir um restaurante vegetariano que não chegou a sair do papel. Depois disso, nunca mais deu as caras. Evaporou.
- Ahnn... Creio que não esteja fazendo muita falta – disse sorridente e simpático.
- Ah, não mesmo – concluiu Alberto, seguido de uma espontânea risada – Aquela voz...
Ficaram ambos quietos. Seu Paulo limpou o facão em um pano. Percebeu Alberto vidrá-lo com saudosismo.
- Abandonou a Gaúcha?
- De forma alguma – disse, amável – Está ali – apontou para a faca cravada em uma tábua presa na parede atrás de si – Apenas a aposentei.
- Algum motivo especial?
- Fiz um churrasco particular de despedida com ela e resolvi deixá-la descansar. Seu último corte deixou-lhe praticamente cega. É uma guerreira. Agora só a uso para finalidades muito particulares, como enfeitar meu simples açougue. É como dizem: lugar novo, faca nova. Não é assim? – divagou, guardando o facão limpo numa gaveta.
- Praticamente cega por causa do último corte? – repetiu. Seu Paulo notou que Alberto estava interessado – A carne do boi deveria ser muito nobre, hein?
- Muito pelo contrário – respondeu, esbanjando um sorriso muito peculiar – Era a língua. E de uma vaca.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Desequilíbrio

A primeira coisa que Vicente pensou ao pisar em São Paulo foi na sábia frase de sua mãe:
- Você vai passar fome.
Desembarcar na rodoviária do Tietê foi tão desagradável quanto empolgante: morar sozinho, na cidade grande, era o desafio de qualquer garoto do interior
O sonho de ser engenheiro o consumia desde pequeno, embora não soubesse que à atividade de construir, principalmente projetar casas com Lego para depois usufruir do prazer de destruí-las, dava-se tal nome. Sua habilidade com números era notável, principalmente a disciplina com que se comprometeu aos estudos para entrar na Politécnica de São Paulo. Ser rechaçado pela vontade da mãe, especialmente em virtude da distância obrigatória, não o fez recuar em algum momento. Entretanto, pisar na cidade grande com quase nada no bolso e ainda menos no estômago, obrigou Vicente a refletir, mesmo por poucos segundos, se havia tomado a decisão certa.
Não arranjou república, mas já tinha casa. Ou pelo menos, um teto. O pulgueiro em que morava era um verdadeiro cubículo. Seu apartamento no Edifício Central, na Praça Roosevelt, era tão pequeno que o quase nada que tinha já era muito: espelho no banheiro, mesa de boteco e um chuveiro gelado.
Com o tempo, seu corpo foi perdendo a delineação dos músculos. A magreza o atacava, pois sua dieta a base de miojo e lanches variados nas padarias paulistanas não chegava a ser extremamente nutritiva.
- Preciso de um emprego – disse certa vez ao sair do banho e examinar seu corpo nu no espelho: até seu rosto, outrora rechonchudo, cedeu lugar aos ossos polidos e evidentes. Estava com cara de cavalo.
Apanhou um jornal e abriu a parte dos classificados. Acompanhou com os olhos os pequenos quadrados riscando aquilo que não lhe agradava. Não estava em condições de recusar dinheiro, mas não havia nascido com o dom de ser servente de supermercado, tampouco animador de festas infantis. Não se achava engraçado.
Sorrateiro, como se seu olhar fosse chupado, pousou em algo interessante:
- El’Vatre? – repetiu em voz alta – O que será? – perguntou para o chão – Salário a partir de R$ 950. ...E é perto...
Parou com os devaneios e apanhou o telefone: ligou para o local e agendou uma entrevista para o dia seguinte.
- Bom dia, eu tenho uma entrevista com o Sr. Moreira – disse a uma secretária esquálida que atendia pelo nome de Rosana.
- É só aguardar. Sente-se, por favor.
A sala de espera conseguia ser menor que seu banheiro. O pano das poltronas parecia ter sido entregue às traças havia tempo, e cada pedaço da parede era embrulhado por três dedos de poeira.
Antes de perguntar a si mesmo aonde fora se meter, Rosana o avisou que o tal Moreira já o esperava na porta ao lado.
- Com licença – disse educadamente após abrir a porta.
- Olá. Por favor, fique a vontade – respondeu.
Walter Eusébio de Clara Moreira, ou apenas Sr. Moreira, tinha os olhos fundos acobertados por enorme par de óculos, e a barriga em formato de barril mal cabia entre o espaço da cadeira e a escrivaninha.
- Vamos falar de negócios – disse rude, puxando a cadeira para mais perto da mesa – O que você sabe fazer?
- Eu...ah...sou estudante de engenharia, comecei faz pouco tempo – respondeu – Sou do interior e estou a procura de algum emprego que possa me sustentar...
- Entendo – cortou o homem – Me responda...qual é o seu nome? – perguntou, apoiando o queixo gordo sobre a mão.
- Vicente...
- Vicente, é o seguinte – sua voz rasgada tinha bafo de charuto – gostei de você!
- Ah...é? Mas eu...
- Minha proposta é essa – disse empurrando um papel almaço virado de cabeça para baixo – Nossos dez segundos de conversa foram mais que suficientes e eu tenho certeza que você será capaz de efetuar tal atividade.
Vicente ouvia as palavras de Sr. Moreira prestando a mínima atenção necessária. Forçava os olhos para ler cada linha torta e apagada do papel que empunhava, não acreditando com o que se deparava.
- O senhor está falando sério? – respondeu incrédulo.
- Claro que estou. Tenho cara de homem quem brinca em serviço?
- Eu... – Vicente gaguejou – Por que acha que eu sou capaz de fazer...isso?! A gente mal conversou, você nem se preocupou em saber o meu nome direito e realmente acha que eu sou capaz...
- Você é capaz – respondeu Sr. Moreira encostando-se na poltrona, que rangeu – Eu sei disso. Eu vejo isso.
- Sério? Aonde? – retrucou desafiante.
- Nos seus olhos. São frios.
*
- Pois não?
- Cláudia Rorche? – perguntou Vicente do outro lado do muro de concreto coberto por unha de gato.
- Isso.
- Represento a El’Vatre – respondeu, mostrando um cartão.
- Sim, claro! Entre!
Vicente abriu a porta com cuidado. Fechou-a e, timidamente, atravessou o pequeno jardim de ladrilho, subindo a escadinha de tijolo e deparando-se frente a frente com a famosa Cláudia Rorche. Famosíssima Cláudia Rorche.
- Entre, fique a vontade.
- Obrigado – agradeceu, adentrando a pequena sala de estar.
Nunca se sentiu um bom vendedor. Admirava o bom uso da retórica e as artimanhas eloquentes que ela poderia gerar, embora nunca tenha se familiarizado com discursos convincentes de articuladores de palavras. A proposta de Sr. Moreira era audaciosa e, até certo ponto, ofensiva. Que procurasse um especialista! Todavia, não tinha porque reclamar. O dinheiro era ótimo e sua geladeira estava longe de ser farta.
Cláudia fechou a porta e mirou-lhe o olhar. De cima a baixo.
- Sente-se, por favor. Quer um copo de água?
- Adoraria – respondeu já sentado, colocando a pesada maleta que carregava ao seu lado no sofá. Viu a mulher se distanciar rumo à cozinha. Sob seu vestido de ceda branca quase transparente, Vicente pôde ver o rebolado da mulher que gingava a bunda sem calcinha de um lado a outro. Fora de seu alcance, Vicente colocou-se de pé e vidrou-se num espelho. Nem parecia ele mesmo: o cabelo impecavelmente penteado, o terno fino de risca de giz, camisa branca e gravata fina preta. Sua mãe estaria orgulhosa.
- Gostou?– perguntou Cláudia, surpreendendo Vicente.
- É um belo espelho – respondeu sem graça, apanhando o copo e bebericando a água aos poucos.
- Comprei em uma viagem à Índia – colocou-se ao lado de Vicente e olhou seu reflexo junto com o dele. Estavam os dois juntos, como se espiassem pela janela – O vendedor me garantiu que o espelho só reflete o que é bom o suficiente para ser refletido.
Cláudia deixou a frase solta no ar. Vicente passou a repará-la. A idade já deixara sua marca. A mulher era bem mais velha, mas não menos sensual. Seus cabelos loiros delineavam a fineza de seus traços, e seu rosto era ressaltado com os lábios fortemente pintados de vermelho. Ela se aproximou. Pelo outro lado do vidro, Vicente viu o peito coberto pela roupa fina e sentiu o cheiro forte que a pele exalava. Cheiro de mulher.
- Me diga – disse Cláudia num sussurro – O espelho mostra alguma coisa?
- Ah, mostra...
- E o que vê?
- Certamente... – as palavras saiam pausadas – o que há de melhor a ser mostrado.
De canto de olho, Vicente viu a mulher sorrir e afastar-se. Andou em direção ao sofá e parou frente a maleta.
- Quais são as novidades que fizeram o Moreira trazer rapaz tão charmoso a minha casa?
- Duvido que você já não saiba a resposta – ainda virado frente ao espelho, Vicente observava Cláudia mexer na maleta.
- Parece que o Moreira deixou você a par de tudo.
- De fato, estou bem informado – respondeu com um sorriso cínico.
- De todas as possibilidades? – perguntou desinibida passando a mão no pescoço, que deslizou até os seios soltos sob o robe. Pelo reflexo, Vicente a acompanhou. Seus dedos tocaram na gravata que, pouco a pouco, perdeu a força de seu laço e cedeu à queda.
- Sim – ainda pôde ver uma macha branca pendurada no corpo da mulher ao virar-se rapidamente. Parada. Nua – Principalmente essa.
Andou decidido, passada firme. Olho a olho. Escancarado, o corpo nu alastrava a luz do sol que o enfeitiçava. Parou o rosto a centímetros do pescoço da mulher e só percebeu o caminho que tomara ao notar seus lábios presos aos dela.
Deixou suas mãos guiarem a visão do instinto proibido. Mesmo com os olhos fechados, lembrava os alertas de Moreira sobre a perdição que o atacava como cenas exaustivamente assistidas.
Maligna. Bruxa. Feiticeira. Não se entregue a perdição. Não a deixe testá-lo.
A voz aveludada de bafo de café competia com o jogo de pernas e braços, que digladiavam. Ignorou ao perceber a dança que suas línguas ensaiavam, não apenas boca a boca, mas principalmente boca a corpo. Chupava-lhe os seios, e deixava ser sugado por lábios completamente enfeitiçados. O perfume. O toque. O charme.
Faça seu trabalho. Arrepio. Não se esqueça do seu trabalho. Loucura. Valorize sua frieza. Desequilíbrio.
Jogados ao chão, sua nudez montava sobre o corpo de Cláudia Rorche, que gemia em seus ouvidos e mordia-lhe as orelhas.
Você sabe qual é o jogo. Não se encante com ‘olás’. Deixe que suas mãos façam o trabalho.
Ah, e faziam!  Seguravam com força, faziam o impossível!
- Você...você ainda...ainda não... – dizia Cláudia entre um gemido e outro – disse...seu...nome...
- Pode me chamar de...Moreira....
Agarrou o robe jogado ao chão e evolveu a mulher, laçando-o entre o pescoço como quem teme a fuga da caça. Num laço, puxou-o com força. Jogou as pernas contra o tronco de Cláudia, sentando sobre seus seios. 
Com um joelho sobre cada braço, Vicente ignorou os solavancos desesperados dados pela vítima que, por meio do olhar esbugalhado, aclamava por socorro. O rosto arroxeado suplicava por misericórdia ou ao menos uma explicação do porquê de tudo aquilo.
- Com certeza...! – Vicente fazia cada vez mais força – Você sabe – Cláudia balançava o corpo freneticamente – por mais que eu não saiba porque estou a matando! – apertou o nó como um ultimato. Ouviu a golfada de Cláudia e relaxou seu corpo nu enrijecido. Não havia mais contra quem lutar.
Jogou-se no chão, deitado ao lado do corpo. Olhou o teto por poucos minutos até decidir se levantar.
Enquanto se vestia, Vicente deu uma última olhada no corpo estirado e chegou a pensar nos motivos que levaram Moreira a contratar uma pessoa para passar a limpo a tal da Cláudia Rorche. Parou de frente ao espelho para arrumar a gravata, reparou nos próprios olhos e, sem seguida, no defunto da sala de estar.
Chegou a questionar como Moreira havia percebido a frieza de seus olhos mas dispersou com o ronco de sua barriga. Deu última olhada e despediu-se de Cláudia Rorche sem arrepender-se tanto. Antes ela sem vida que seu prato sem comida.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A Passadeira

Quando entrou pela primeira vez na casa de Dona Quitéria, Dolores assustou-se:

- Jesus amado... – disse a si mesma.

Era experiente, tinha vivência. Já havia passado por casas dos mais variados tamanhos e estilos arquitetônicos, dos mais discutíveis gostos decorativos e das mais abrasivas variantes de donos e donas, senhoras e senhores, patrões e patroas. Mas era primeira vez que via, em toda sua vida, uma casa do tamanho da de Dona Quitéria.

- Não é tão grande quanto parece. Com o tempo você se acostuma – respondeu ao suspiro exclamado pela visitante – Você vai ver só... – disse, simpática.

Dolores consentiu. Não havia nada que pudesse fazer, afinal de contas. Apenas o seu trabalho bem feito. E isso, Dolores sabia, era indiscutível.

Estava já habituada com grandes desafios. A primeira casa que limpara fora a sua própria. O barracão da Rua Quinze na Ceilândia, quando ainda morava em Brasília, costumava ser tratado com carinho pela mãe que alternava as faxinas entre a própria casa e a dos outros – jurava já ter limpado pessoalmente a poeira do pé de Emílio Médici enquanto varria a varanda do Palácio do Planalto após uma ventania de poeira que fizera o então presidente ter sérias crises de tosse. As pessoas duvidavam disso.

Dolores passou a ajudar a mãe após as várias horas de trabalho constante e, não tardou, percebeu levar jeito para a coisa.

Ao mudar para São Paulo, Dolores encontrou na faxina seu ganha pão. Não era estudada, e a sina injusta posta à sua vida não permitira que a então jovem mulher desenvolvesse certas habilidades e dotes próprios. Diziam que cantava bem.

- Este aqui é o seu quartinho – disse Dona Quitéria com simpatia – Tem essa cama, o armarinho, essas gavetas... Enfim, sinta-se em casa, por favor.

Tímida, Dolores sentou na cama e trocou sua roupa pelo uniforme de trabalho. Prendeu os cabelos negros, curtos e cacheados, num coque de última hora. Vestiu seu avental verde, cobrindo-o com um babado branco e trocou os sapatinhos de veludo pelo chinelo velho. Dolores estava pronta para seu primeiro dia de trabalho na casa de Dona Quitéria.

- Ah, que bom que já está arrumada. Venha cá, quero lhe apresentar minha família – disse a dona da casa – Esta aqui – prosseguiu quando Dolores fixou-se ao seu lado – é Naiara, minha filha mais velha; Eurico, o caçula; Jaime, meu marido e minha mãe, Valmira.

Acenaram sem muita firmeza, como se estivessem se sentindo obrigados a cumprirem a formalidade. Dolores retribuiu com um aceno de cabeça e um rosto risonho antes de todos se dissiparem e desaparecerem, cada um para seu respectivo canto.

- Bom... – retornou a patroa – você me foi muito bem recomendada, tenho certeza que vai tirar isso de letra. Tem alguma especialidade?

- Olha, Dona, eu cozinho bem e sou caprichosa, limpo direitinho – disse – Mas, modéstia a parte, sou uma passadeira de mão cheia – gabou-se, com notável simpatia.

- Ótimo! – respondeu Dona Quitéria – Eu e meu marido iremos trabalhar, a casa ficará por sua conta. Minha mãe estará aqui, caso precise de ajuda. Tem também as crianças.

As crianças, que de crianças nem tamanho tinham, significavam a mesma coisa que nada em valor de utilidade para alguma coisa, assim como a avó, uma múmia empapada que passava o dia inteiro sentada à frente do sofá assistindo petrificada televisão, o que preocupou Dolores na primeira vez, pois colocou em dúvida se a velha estava viva ou morta.

Não chegou a pensar que fosse maldade de sua parte desejar a morte a alguém que flertava com a mesma diariamente. Mas passou a preocupar-se quando se via imaginando esganando os três durante todo o período em que Dona Quitéria e Seu Jaime estivessem longe.

- Eu quero cachorro quente! – gritava Eurico no ouvido de Dolores enquanto a mesma passava sua roupa.

- Sua mãe não comprou salsicha...

- Não interessa! Eu quero cachorro quente! – esperneava o garoto mimado, que pisava no chão com força, balançando suas tetas pontudas e sua papa esticada.

- Mas eu não posso fazer! Não tem isso aqui e estou fazendo outra coisa!

- Ai, Dolores, faça logo! – dizia Naiara, ao entrar na cozinha, com o telefone celular no ouvido, puxando alguns pacotes de bolacha da dispensa, vestindo um top e micro shorts e exibindo seu corpo magro por onde quer que andasse. Dolores sentiu-se incomodada na primeira vez que vira a garota apenas de calcinha, andando pra lá e pra cá, tagarelando no celular. “Tô na minha casa, ando como quiser” – gritou na ocasião.

Dolores não respondeu. Continuou com seu serviço até Eurico puxar o ferro da tomada.

- Eurico!

- Faça logo o que estou mandando! Eu pago você pra fazer o que eu quiser!

- Não grite, Eurico! – esbravejou Naiara – Não vê que estou no celular?! – justificou abocanhando um pedaço de biscoito, deixando cair mais comida no chão do que dentro de sua própria boca – Dolores, limpe.

Era assim todos os dias. Os filhos importunando e a velha estática em seu lugar. Levantava vez ou outra, sempre em direção a Dolores para dizer que, o quer que estivesse fazendo, estava uma merda.

- Você fala que é passadeira? Que merda de roupa! – ralhava. E ia embora.

O tempo foi passando e as coisas piorando. Não existia mais limites dentro daquela casa. O som alto da televisão que Valmira assistia disputava com o proveniente do quarto de Naiara, que costumava trazer alguns amigos para festas rápidas e escondidas em seus aposentos.

- Se você falar alguma coisa pra minha mãe, Dolores, eu a faço demitir você. Entendeu?

A entrada de Dolores era proibida no quarto de Naiara. Vivia trancado. Já o de Eurico era escancarado. Não foram poucas as vezes que flagrara o garoto masturbando-se sobre sua cama. Já o vira transando com os bichos de pelúcia da irmã e alguns travesseiros.

- Sai daqui, porra! – berrava Eurico.

- Punheteiro! – gritava a irmã, do outro quarto.

- Puta! – retrucava.

Era um entrave verbal por dia. Som alto. Gritaria. Bagunça. Ordens.

- Você que passou esse vestido? Que merda – Brigas! Portas batidas! Palavrões!

Basta! Dolores não aguentava mais!Estava mais magra, seus cabelos estavam caindo. A úlcera a atacava, as olheiras pintavam o rosto e as rugas rasgavam a pele. Ia pedir as contas no dia seguinte, na sexta feira.

Levantou-se da sua cama e apanhou a muda de roupas passadas. Caminhava no longo corredor que dava para o quarto de Dona Quitéria. Recebeu um solavanco, caindo no chão.

- Sai da frente, sua mula! – gritou Naiara, que corria vestida de roupão, os braços apertando os peitos, em direção à cozinha. Ao tentar levantar-se, outro solavanco. Dessa vez Eurico.

- Não vai levantar, não vai levantar, não vai levantaaar... – cantava o gordo, pulando e rindo sozinho, chutando as roupas caídas.

- Pare com isso, moleque! – gritou ao erguer-se – Você vai amassar tudo, retardado!

Eurico ignorou. Fixou-se sobre uma camiseta do pai e esfregou os pés.

- Pare!

Naiara voltou correndo da cozinha, irritada. Atropelou Dolores e trancou-se no banheiro.

Dolores levantou-se e agradeceu por não ser empurrada novamente por Eurico, que não estava mais lá. Juntou as roupas e jogou-as sobre a cama da patroa.

- Você que passou essas roupas? – perguntou Valmira, que surgira das paredes como só os fantasmas conseguem – Que merda – finalizou antes de desaparecer.

Dolores tremia. De raiva. O sangue pulsava nas veias com força, e a batida do coração atordoava sua cabeça, ecoando nos tímpanos como se alguém os estivesse marretando. Seus dentes batiam, rangiam. A impressão é que faltaria pouco para que quebrassem.

Sorrateira, ergueu-se. Caminhou vagarosa até o quarto de Naiara, sem saber o porquê. Reparou na zona. Viu revistas abertas. Apanhou uma.

Fazia tempo que não via um daqueles. Era grande, roliço, cabeçudo. Ergueu os olhos e aproximou a página da vista. Reparou nas outras revistas espalhadas, todas estampadas com figuras fálicas e veiudas. Caminhou até o banheiro e colou a orelha na porta.

Ouvia gemidos e gritinhos acompanhados de barulhos melosos e molhados. Bateu na porta.

- Naiara? – disse, com uma frieza estranha. Estranha e boa.

- Cai fora! – retrucou, rangendo os dentes.

Dolores caminhava para a cozinha. Batia a revista em forma de canudo na mão, cantarolando.

- Que merda de música – disse Valmira sentada no sofá.

Ignorou, entrando na sua área natural de serviço. Eurico estava lá, sentado em um banquinho, gordo como sempre.

- Quero cachorro quente!

- Tá bom. Eu faço – disse, serena. Estava leve.

- Ãh? – respondeu, como pego de surpresa.

- Eu disse que eu faço.

- Mas não tem...

- Tem sim... – respondeu sibilante – Tem sim... – não soube dizer se os chocalhos que ouvira foram realmente da televisão ligada na sala.

*

Ao trancar a porta da casa, olhou-a uma última vez. De fato era uma bela casa. Imponente, suntuosa. E agora maravilhosamente silenciosa.

Saiu de cabeça erguida, contente com o trabalho feito. Certamente ele fora bem efetuado. Principalmente o último.

- Não é fácil ser faxineira, não. Principalmente passar roupa – pensou alto, enquanto caminhava na calçada rumo ao ponto de ônibus. Ela tinha razão. Nenhum cirurgião no mundo seria capaz de deixar o rosto de Valmira tão liso.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Velório

Às memórias de Alcides sobravam sorrisos, e quem o conheceu em vida não se lembra do velho sem que esboce uma única bufada de alegria. Era uma grande pessoa. Foi um grande homem.
Seu velório estava cheio.
A capela do cemitério da Consolação estava lotada, repleta de ávidos e saudosos amigos, séquitos seguidores de suas palavras e eternos aprendizes daquele mestre na arte de aprender com a vida.
- Ele viverá na morte! – gritou um saudosista, companheiro das intermináveis partidas de dominó na pracinha do bairro da Aclimação.
- Alcides Ferreira da Cunha Brandão! Para sempre comigo! – continuou outro colega com quem Alcides passava horas sentado no banco do Parque jogando migalhas de pão e grãos de milho às pombas.
Ele estava lá. Quietinho, deitado em sua nova cama cheirosa, florida, forrada e macia, descansando sereno. Ao seu lado, os familiares condolentes e cabisbaixos.
Arlindo, seu filho, era o mais procurado, ao lado de sua esposa que carregava Tobias no colo, que devorava uma barra de chocolate e vidrava o avô achando graça no nos algodões enfiados em seu nariz. Suas mãos eram apertadas pela fila dos intermináveis admiradores do finado pacato veterinário aposentado.
- Seu pai foi a melhor pessoa que conheci na vida – ouvia – Você foi abençoado por Deus.
- Obrigado – respondeu o filho, que logo se silenciou.
Entre o burburinho da multidão que se apertava no espaço limitado, ele ouviu.
Um barulho falho e contínuo. Era como se saísse a força, tremido, balançante. A capela aquietou.
As pessoas fitavam umas as outras, espantadas. O barulho seguia contínuo, tamborilante, ricocheteando entre paredes soltas que proporcionavam um som meloso e abafado, sumindo gradativamente.
Ninguém ousou se mexer. Estavam todos atônitos e em silêncio, boquiabertos.
O som se repetiu. Seco, rasgado, curto e certeiro.
Os presentes só se moveram quando o cheiro da devassidão tomou conta, impiedosamente, da sala que agora jazia abafada; levavam as mãos às narinas e enxugavam os olhos que lacrimejaram.
- Ué, o morto peidou?
- Larga a mão de ser besta, morto não peida! – retrucou uma senhora, Dona Edelvira, batendo com sua bolsa na cabeça do falante – Respeite o seu Alcides.
- Arlindo! – ralhou a esposa, com a mão no nariz.
- Não fui eu! – retrucou – Deve ter sido o Tobias, eu falei pra você não dar chocolate pra ele de estômago vazio, não é primeira vez que ele faz isso!
- É, tem razão, esqueci – disse a mãe, esforçando-se para retirar a barra de chocolate do menino desentendido.
Sem seu lanche, o garoto reparou nos algodões que se moveram e sorriu com a leve mexida minguante para cima dos lábios do avô, que também riu ao seu lado sem que o neto notasse, ficando duplamente aliviado. Principalmente por descobrir que certos prazeres nem o fim da vida tira.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Pela manhã

Nélio passou a detestar sua música favorita quando resolveu usá-la como despertador de seu telefone celular.
Eram seis e trinta e cinco da manhã de segunda-feira. Os raios de sol que emanavam da janela do sexto andar do edifício Towers Towards, Alameda Jaú, Jardins, batiam em seu rosto sem pedir licença, como visitantes inconvenientes e desagradáveis.
- Bosta de sol – resmungava – Bosta de música – concluía com dor no coração.
Seu banho se estendia por longos e desnecessários minutos e tomava o café sem a mínima pressa – ele não tinha pressa alguma de chegar ao trabalho, ou bosta de trabalho, como costumava resmungar pela manhã – brincava com os pedaços de pão, àquela hora borrachento, jogados em seu prato e amassava os cristais de chocolates não consumidos pelo leite, completamente azedo em sua boca, em sua caneca do Santos.
- Bom dia, filho – dizia sua mãe.
Sua resposta era um grunhido indecifrável, o que já havia se tornado rotineiro: ao invés das frases prontas matinais, respondia uma conjunção desconexa de vogais e consoantes sorteadas a esmo. Acordar de manhã cedo era realmente um saco – ou uma bosta. Para Nélio, era sempre uma bosta.
Subia a Joaquim Eugênio com um óculos de sol jogado à face e a mochila pendida no ombro esquerdo. Com a mão direita carregava o último exemplar da Rolling Stone americana (a brasileira era uma bosta) com o rosto bocudo do Steve Tyler estampado na capa (Why are they mad?) e, aos seus ouvidos, a voz agradavelmente chorosa do Morrissey agonizava, relembrando-o que as coisas muitas vezes poderiam ser infinitamente piores que uma segunda-feira de manhã. Os Smiths até que eram reconfortantes.
- Sweetness, Sweetness I was only joking when I said I´d like to smash every tooth in your head... – cantarolava.
Chegando à Avenida Paulista, virou a direita. A estação Brigadeiro não era longe dali, apenas algumas quadras. Entretanto, sua passada vagarosa cadenciava o ritmo empolgante que sentia dentro de seu coração para mais um longo e tedioso dia de estágio.
Com calma, admirava o emaranhado de carros que riscavam o asfalto liso e disputavam a buzinada mais alta. Via seu reflexo nos prédios envidraçados e indignava-se com seu cabelo que insistia em não abaixar, tropeçando em um mendigo que dormia bêbado na calçada, coberto por um saco de batatas.
Julgou ser xingado, mas não ouviu: estava na porta da estação e já se encontrava frente a frente com a escada rolante.
Ah, que insuportável! Aquela gente, aglomerada, sem educação. Esbarra-esbarra, sovaqueira, o cheiro azedo de suor. Um comboio de pessoas que não terminava, espremidas, entrelaçadas em suas próprias cadeias de problemas, que se roçam e se tocam como íntimos desconhecidos. Nélio sente todos, assim como todos os sentiam: pela pele absorvia o estresse inacabado do macio terno de cetim do advogado engravatado a sua frente, entendia as dores da doméstica espancada pelo marido alcoólatra na noite anterior, a fome do estudante que deixara de tomar café da manhã para queimar seu baseado escondido dos pais que já tinham saído para o trabalho havia muito, os problemas fúteis da garota magra esnobe (To gorda!) e os demônios do pastor que não entendia sequer o sermão mais fácil que pregava.
Na plataforma sentia-se mais livre, mesmo que por pouco tempo. O trem rumo à Sumaré já havia freado e sua porta deslizado para seus cantos correspondentes.Entrou no primeiro vagão por ser, supostamente, o mais vazio – que não estava.
Colocou-se em pé entre as cadeiras ocupadas e as paredes da cabine do maquinista, de frente para as janelas fechadas. Apoiou sua cabeça e fechou os olhos.
- Agora é só esperar... – comentou consigo mesmo.
Seus olhos abriram na mesma instantaneidade com a qual os fechou. Sentiu novamente o toque, agora ombro a ombro. Mas desta vez gostou do que sentiu.Não se preocupou em olhar para os lados, limitando-se apenas em ver de esguelha.
A menina tinha o mesmo tamanho que ele e, provavelmente, a mesma idade. Pele dourada e cabelos negros. Era interessante: não tinha um nariz grande e suas feições eram simplórias, para não dizer delicadas. Parecia ser bonita, pelo menos de perfil...
- Moço...
- Oi? – tratou de responder Nélio, tirando o fone do ouvido.
- Moço... – repetiu.
- Sim... – moço?!
- Tem como você abrir a janela, por favor?
A resposta de Nélio foi gestual, erguendo os ombros e torcendo a boca. Viu-se fazendo o favor, abrindo-a.
- Obrigada.
- Nada...
Voltou a sua posição original, apoiando a cabeça novamente e fechando os olhos.
O toque se estendeu.
Desta vez, seus braços se tocaram. Sentiu aquela troca de energia que só o transporte público conseguia propor. Suave e morno, o toque era bom. Seus pelos conversavam e se acariciavam como um casal recém formado de adolescentes apaixonados. Nélio não se mexeu.
Abriu os olhos e tentou verificar o rosto da garota pelo espelho. Em vão. Imagem desfocada, enxergava apenas um borrão. A janela aberta dificultava, refratando a fonte daquela sensação verdadeira e serena.
A garota moveu-se. Para mais perto. Ouviu um suspiro, e não era dele. Decidiu mover-se também, colando ainda mais ao seu lado. Suas peles estavam coladas, grudadas. Seus cotovelos dividiam o mesmo espaço de apoio.
Olhou mais uma vez para o espelho. Como será seu rosto? Por que é tão difícil separá-lo do espelho? Por que é tão difícil encontrar aquilo que está justamente ao lado?
Sua cabeça rodopiava. Virar o rosto despretensiosamente? Não parecia uma boa opção, poderia assustá-la. Puxar assunto? Não, melhor não...
- Estação Clinicas.
A garota moveu-se de novo. Esguia, postou-se firme. Era hora de sua partida e a última chance de Nélio descobrir se aquele rosto indecifrável era do jeito que desenhava na cabeça.Pensou em cutucá-la, como se fosse um acidente. Mas ela já tinha andado e saído do vagão.
A janela mostrava apenas suas costas e seu rebolado apressado. Nélio apoiou sorrateiro sua cabeça na parede e suspirou fundo conformando-se, até certo ponto entristecido, de que não havia perdido grande coisa – mentindo a si mesmo, claro. Ele sabia que ninguém perde pouca coisa em uma segunda-feira de manhã.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Acrílico

É saudade, então.


E mais uma vez

A falta que ficou

Foi eu mesmo quem criei

Do que nunca aconteceu.


Os rabiscos copiei

E os tons que escolhi

Entre as tintas que inventei

Misturei com a promessa que nós nunca fizemos

De um dia sermos dois.


Me escondo com os pedaços dos lençóis

Que não chegamos a sujar

E com as lágrimas que não brincaram com você

Afoguei em águas destiladas,

E da sua boca arranquei pedaços

Que mostram agora essa saudade latente

Onde é fria a tarde quente

Sinto gosto da fumaça

Mais uma vez.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O Escritor

A pior parte era quando faltavam palavras.
Já estava tudo pronto: a ideia central, o começo, o meio, fim, nomes e até alguns diálogos. Mas não havia coisa pior para Júlio quando faltavam palavras para expressar tudo aquilo que já tinha forma na cabeça.
Quando pequeno, gostava dos desenhos. Passou a rabiscar os próprios quadrinhos quando ganhou do pai um estojo de lápis de cor. Era habilidoso, sem dúvida. Não na parte gráfica. Facilmente uma pessoa poderia ser confundida com uma casa, assim como uma ovelha chegou a ser entendida como navio por sua mãe, dona Elisa, sua maior fã. O que chamava a atenção de todos era a facilidade de Júlio de criar histórias.
- É um talento raro! – ouvia.
Na escola, destacavam-se as redações e as altas notas em Português.
- Em biologia seu filho é um desastre, dona Elisa, e em exatas então... – disse a professora, certa vez – Mas seus textos compensam.
Júlio não era muito chegado em esportes (era constantemente o último a ser chamado na montagem das equipes de educação física e também não era raro esquecerem sua presença, com os times sendo fechados antes mesmo de Júlio dar-se conta que não fazia parte de lado algum), logo não costumava ser o centro das atenções na ala masculina.
Seu protótipo ajudava: gorducho, atrapalhado. Foi o primeiro da turma a ter barba e o último a querer livrar-se dela. Atraía pessoas semelhantes, sendo que sua primeira namorada chegou a ser cumprimentada por seu pai com um forte tapa nas costas e um aperto de mão.
Ingressou na faculdade de jornalismo. Participava de concursos de redação e raramente ficava fora do pódio principal. Sua escrita chamou a atenção de pessoas ligadas ao Expressa Geral, o jornal da faculdade em que assumiu o posto de cronista sem esforço.
- Você é um talento raro, Júlio! Você escreve muito bem, é invejável – dizia seu chefe – E suas histórias são muito legais, muito gostosas de serem lidas. Tenho certeza que você conseguirá lidar com este cargo com um pé nas costas.
O único problema do Expressa Geral é que ele era um jornal de universidade. Logo, não era lido por praticamente ninguém. Por isso ficou espantado quando fora obrigado a parar de tentar encontrar palavras em algum lugar perdido de sua cabeça grande, enquanto escrevia sozinho em uma mesinha de cimento de seu centro acadêmico.
- Você é o Júlio, né? – ouviu. Largou a caneta e olhou para cima – Do jornal...?
- Sim – respondeu atônito. Não só por ser reconhecido, muito menos por supor ser lido por alguém. O que o deixou boquiaberto foi o alguém.
Ela apresentou-se como Laís. Como se precisasse. Todo mundo sempre soube da Laís.
Alta, magra, loira. Seus cabelos cor de mel desciam pela cabeça, planavam no ar e aterrissavam nos ombros como a leveza de plumas. Seus doces olhos verdes gritavam, como se exigissem atenção e sua boca rasgava sorrisos brilhantes tal qual cometas que riscam a noite.
- Você está ocupado? – perguntou.
- Não – disse após um pigarro – Pode falar – Júlio não conseguia desgrudar de seus olhos de esmeralda.
- Há tempos que tenho ouvido falar de você...
- Duvido muito – respondeu simpático após a pausa da garota para arrumar o cabelo e puxar uma cadeira para sentar-ser. Tinha cheiro de fruta.
- Não seja modesto – respondeu. Dentes perfeitos a mostra – Todos nós já lemos algum de seus textos. São ótimos.
- Muito obrigado.
- Aliás, o seu último na edição da semana passada foi excelente. Surpreendente! Eu não esperava por aquele final, que virada!
- Muito obrigado novamente. Eu tento fazer o meu melhor.
- E faz, não há dúvidas – respondeu com sorriso largo, pousando sua mão delicada sobre a calejada de Júlio.
Ele observou a cena durante silenciosos segundos. Seus olhos se encontraram novamente. Laís prosseguiu:
- Sabe, Júlio...Não sei se você soube o que houve com o professor Laerte...
- Não. Quem é esse?
- Professor de literatura. Lecionava nos cursos de letras, alguns em comunicação. Era um gênio das palavras, um grande poeta.
- Era?
- Sim. Ele faleceu há quinze dias, foi uma grande perda. Era muito querido.
- Eu soube de um professor que morreu...latrocínio, né?
- Uma tragédia...
- Sinto muito – respondeu complacente com o rosto murcho da garota. Era perfeita mesmo triste – Mas o que é que tem? – prosseguiu.
- Ele fazia parte do grupo de teatro da faculdade, o qual eu também faço parte. Era nosso roteirista. Escrevia as peças junto com o professor Horácio, que dirige os espetáculos.
- Uhum...
- Com o falecimento do Laerte, o Horácio não está dando conta do recado sozinho. Está muito deprimido e se afundando na bebida. Dizem que ele é alcoólatra em fase de recuperação mas teve essa recaída, coitado.
- Nossa...
- Eu vim procurá-lo para saber se você tem o interesse de trabalhar conosco, como roteirista. O que você acha? Vim em nome de todo o grupo e com o consentimento sóbrio do próprio professor Horácio.
- Eu...ah... – Júlio não esperava por aquilo. Laís apertou sua mão e vidrou-o com seu olhar de sereia. Acabou aceitando.
Conheceu a equipe no dia seguinte, conforme havia combinado.
- Seja bem vindo, Júlio – disse o magro professor Horácio, com o rosto chupado, olheiras fundas, barba mal feita e um singelo aroma de vodka na fala – temos muito a conversar.
O professor era simpático, porém ausente. Suas enormes recaídas o afastavam com frequência do grupo que, aos poucos, era dominado por Laís.
Em uma das poucas conversas frugais que Júlio e Horácio tiveram, o professor dera carta branca ao novato. A história que quisesse, do jeito que quisesse, da maneira que ele achasse melhor. Júlio desconfiou que isso se dava ao fato da falta de ritmo de Horácio para com seus compromissos, mas não se importou. Sua história ficou pronta em menos de uma semana, tamanha empolgação.
Durante esse período e, principalmente depois, Júlio descobriu dezenas de coisas, entre elas que Laís era, sem nenhuma sombra de dúvida, sem margem de erro, uma tremenda vaca.
Megera. Venenosa. Ruim
Ela era capaz de destruir um ambiente amigável em questão de segundos. Víbora.
- Rogério, isso está uma merda! Meeeeerdaaaaa – gritava, chiliquenta.
Com a ausência de Horácio, Laís intitulou-se diretora por fazer parte do grupo há mais tempo, achar-se melhor atriz e mais bonita que o restante.
- Luíza, eu serei a protagonista – disse após uma discussão – Você é do avesso – segurava o script com a ponta dos dedos, como se estivesse com nojo – Precisa nascer mais três vezes para ser, no mínimo, razoável. Eu serei a protagonista e ponto final.
O ódio de Júlio passou a tomar conta de seu corpo quando Laís começou a intrometer-se em seus textos.
- Júlio, isso aqui não faz o menor sentido...
- Lógico que faz, Laís.
- Como? Ele morre do nada?
- Você leu o script inteiro?
- Não...Só minhas falas.
Era uma menina mimada e desprezível.
- Júlio, você não sabe escrever! Isso é uma grande porcaria!
O mundo parou por alguns minutos. Sua cabeça rodou e seu sangue ferveu. Um monstro nasceu de dentro de seu estômago e, descontrolado, passou a vomitar enormes labaredas.
Engoliu em seco. Se não tivesse ouvido isso um dia antes da apresentação oficial, teria mandado-a aos raios que a partam.
Ele não sabia o motivo por tamanho desprezo. Ela era a protagonista e era, sem dúvida, uma ótima história.
- Ela faz isso quando não tem o que argumentar, não ligue – disse Luíza que, de fato, era horrorosa. Precisava melhorar muito para ser feia. Porém muito mais talentosa que Laís.
O descontrole total surgiu no dia do espetáculo.
O anfiteatro estava lotado. A peça fora tratada pela universidade como um evento imperdível. Pessoas disputaram a tapa um ingresso daquilo que seria um espetáculo memorável.
- Júlio, preciso falar com você. Venha cá – disse Laís, no camarim.
- O que é?
- Tome – bateu um pedaço de papel em sua mão com uma lista – Preciso disso.
- O que é isso?!
- Coisas que eu preciso. Vou sair depois da apresentação e ainda não tenho esses itens.
- Gloss?
- Quero que vá agora – respondeu, como se Júlio não tivesse dito nada anteriormente.
- Agora?!
- É surdo? – perguntou enquanto maquiava-se
- A peça vai começar agora! A peça que eu escrevi!
- Você já sabe o que vai acontecer, não precisa ficar – disse, rindo – afinal, foi você mesmo quem escreveu. E é melhor que você vá antes que eu risque seu nome dos créditos. Você sabe que os alunos do corpo de teatro têm bolsa de estudos na faculdade e, do modo como você se veste, acho que precisa dela. E muito.E..tome isso também – bateu-lhe no peito uma calculadora enorme – Para calcular o troco. Uma pena que seja tão ignorante em matemática. Devia parar de ler Dostoievski e se preocupar de vez em quando com aritmética.
Por quê? Por quê? Quem era aquela megera para falar aquelas coisas? Ela não sabia nada da vida de Júlio! Nada!
Não passava de uma aproveitadora dissimulada, uma egoísta sem escrúpulo, uma nojenta! Júlio andava atordoado pelos corredores da universidade. Suava. Enxugava a testa com as mangas. Seus olhos lacrimejavam. Ele não merecia isso. Ela era um bom rapaz! Batalhador, talentoso. Não podia deixar-se abalar por uma mesquinha como aquela, e não daquele jeito.
- Eu não vou é porra nenhuma! – disse, batendo as mãos nos chãos.
Decidido, voltou. Abriu as portas do teatro. A peça já havia começado. Estava no meio do primeiro ato.
Foi então que seu mundo caiu, mais uma vez.
- Que merda é essa...? – perguntou para si mesmo, em voz alta, enquanto a mesma morria ao vento.
Aquilo não era sua peça. Não era sua história!
- Não é possível...
Zonzo, apalpava as paredes para locomover-se. Não estava creditando no que seus ouvidos escutavam.
Laís mudara suas falas. Dizia coisas desconexas, de poetizas em formação que insistem em lamuriar textos sem necessidade, a fim que seu parceiro de cena, Rogério, não passasse de um objeto tão nulo quanto o tablado do próprio palco.
Não. Aquilo não.
Na lateral, em pé, bufava. Apertava com força a calculadora até seus dedos doerem. Tremia.
Num instinto que não soube explicar posteriormente de onde viera, Júlio arremessou a calculadora no palco com toda sua força. Viu-a voar como um pomo sem asa, dardejando como um projétil sedento por seu alvo. A calculadora rodava tal qual uma bailarina e atingiu a cabeça com a força de uma marreta que destrói o muro. A cabeça errada.
O objeto espatifou-se, e o chapéu de Rogério parou bem longe de sua cabeça desmaiada. Caiu que nem pedra.
Júlio gelou. Parado, sentiu os corpos virarem-se em sua direção, fuzilando-o com o olhar. O silêncio só permitia ouvir os gemidos de Rogério, estatelado no chão.
Deixou que os seguranças levassem seu corpo grande para fora do teatro sem pestanejar, não ligando para as acusações da plateia e para os dedos em riste de acusadores desinformados.Xingou-se, mesmo sabendo que não era sua culpa.
Maldita calculadora. O teatro teria visto o verdadeiro espetáculo se estivesse com um Crime e Castigo na mão.