segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Desabafo animal

Isso é uma história real.

Quando pequeno, possuía em mim uma razão quase que existencial por animais. Não que hoje eu tenha deixado de gostar, mas naquela época era uma tara...tara doentia!

“Pai, vamos ao zoológico?” – era o tipo de coisa que eu falava quando estava entediado em casa e já tinha cansado de assistir a todos os filmes da Disney ou farto de inventar épicos duelos com meus bonecos, como uma luta entre o Pato Donald e o Yoga, de Cisne, para ver quem conquistava o coração de alguma Barbie que eu e meu irmão deixamos careca da minha irmã. Mas minha irmã achava divertido...

“De novo?!” – era o que eu ouvia como resposta, o que me fazia entender que aquilo significava um não, me deixe ver a corrida.

“E ao Simba Safári?” – esse eu perguntava quando queria algo mais emocionante, afinal não é sempre que se tem a oportunidade de passear entre esses selvagens e ver um camelo lambendo o vidro do seu carro ou um dar um amendoim na mão de um macaco prego que, ao abri-lo e comer a semente, jogava a casquinha em cima de você.

“Hoje não”.

Essa minha adoração por animais me fez pensar, durante certo tempo, em estudar veterinária, o que me fez mudar de idéia quando minha mãe disse que, além de cuidar de gatos e cachorros, teria também que tratar a vida de bichos fofos como escorpiões e cobras corais. Hoje eu faço uma coisa um pouco diferente, embora isso não me impeça de torcer pelos profissionais da área da saúde animal.

Sendo assim, não era raridade alguém me flagrar puxando a saia da minha mãe e implorando por um cachorro...Acho que de tanto insistir, acabei ganhando meu primeiro animalzinho.

Um dia fui à casa do Rodrigo e vi que, além de um casal de tartarugas, um super aquário, passarinhos e um cachorro, ele tinha...chinchilas! Um casal de chinchilas! Cara...que demais! Chinchilas!!

“Pai, me dá um chinchila?”

“Fale com sua mãe”

“Mãe, me dá um chinchila?”

“Fale com seu pai”

Por que os pais sempre fazem isso?

“Eu já perguntei! Ele disse pra eu falar com você!”

“Então não. Chinchilas são sem graça e fazem muita sujeira...”

Calma aí! Chinchilas são sem graça? Oras, mãe, saiba que a pelagem da chinchila é cerca de 30 vezes mais suave que o cabelo humano e muito densa, com 20,000 pêlos por centímetro quadrado. Esta densidade capilar impede, por exemplo, que estes animais sejam infestados por pulgas que não conseguem sobreviver na sua pelagem. Por isto, o seu pêlo não pode ser molhado. Elas próprias tomam banho. E banho de areia. Quero ver qual bicho tem coragem de tomar banho de areia! Esses ratinhos são muito machos!

Se isso é ser sem graça, me desculpe pois não sei o que é ser legal.

Passou-se um tempo e eu até já tinha esquecido dos chinchilas, passando a atormentar meus pais com coelhos e pingüins.

“Coelhos fazem muita bagunça...” – dizia minha mãe. Aliás, ela só dizia aquilo. Como se três filhos pequenos não fizessem. Bom, pelo menos os pingüins ainda estavam no páreo.

“E pingüins?”

Ela deu risada...pelo menos ela não disse não.

Minha vida deu um salto no dia das crianças de 98, na minha chácara. Meu pai surgiu com uma gaiola imensa, quase que do meu tamanho, fazendo esforço para erguê-la. Eu vi de longe. Foquei minha vista para ver se não era nenhum delírio.Quando avistei....dentro dela, encolhido num cantinho...um...

“Chinchila!”

Era fêmea e eu a nomeei de Chila. Fizeram muita pressão em cima de mim na hora para saber qual seria seu nome e esse foi o melhor que surgiu na minha cabeça. Bom, o pessoal gostou...

Eu gostava da Chila, embora ela não gostasse muito da gente. Meus pais faziam um esforço pra gostar dela,meu irmão tinha medo e a tampinha da minha irmã a achava super divertida, embora ela não fizesse nada demais, além de comer alfafa e cagar bolinhas parecidas com as balas Tic Tac.

Caso você queria ter um chinchila, é recomendado que você o solte vez ou outra, pois são animaizinhos muito sociáveis e que não devem ter uma vida solitária. Foi o que fizemos.

Eu abri a gaiola e a bicha saiu correndo tão rápido que o máximo que eu vi foi um borrão cinza perambulando histericamente a nossa sala. Meu irmão pulou para cima do sofá, minha irmã começou a gritar e a gargalhar ao mesmo tempo. Meu pai dava risada e minha mãe ficou preocupada caso a Chila se enfiasse em algum canto e morresse depois. Ela se enfiou.

Foi embaixo do hack. Ficamos esperando que ela saísse durante vários minutos e nenhum sinal de vida. Na minha cabeça já havia se materializado a figura da Chila enforcada com os fios da tevê ou torrada, expelindo fumaça, por ter roído algum cabo elétrico. Pegamos a lanterna e iluminamos o fundo.

Ela estava lá, sentada, olhando para a gente com aqueles olhos negros de bolas de tênis...imóvel...

Meu pai enfiou a mão para pegá-la e o que se viu foi outra correria desvairada daquele roedor pela minha casa. Ela girava em círculos, rodopiava em torno de si própria como um peão adulterado. Meu irmão pulou no sofá novamente, eu e minha mãe ficamos parados com medo de pisar nela, minha irmã e meu pai se divertiam.

Não demorou para a Chila se meter embaixo do sofá. A fresta que existia entre aquele sofá e o chão era minúscula. Certeza que ela estava esmagada. Era o fim da Chila. Pobre Chila...

Nós cinco nos agachamos e espiamos entre o vão e o chão. Num súbito, ela disparou novamente, causando um rebuliço gigantesco no apartamento cinqüenta e quatro, da rua Major Freire número 358.

Minha irmã pulava, entusiasmada, gritando de excitação. Meu pai se juntou a ela.

“Cuidado pra não pisar nela!” – gritamos eu e minha mãe. Eu me referia à chinchila, mas algo me dizia que minha mãe estava mais preocupada com sua filha do que com nosso bichinho de estimação. Desnaturada!

Aquele corre-corre anárquico da Chila cessou quando esta se enfiou, novamente, embaixo de um móvel. O móvel do telefone.

Eu juro que me arrependi profundamente de ter aberto aquela gaiola. As únicas pessoas que estavam se divertido com o escape da Chila eram meu pai e minha irmã. Eu me amedrontava ao imaginar algum pé esmagando-a feito um bolinho e minha mãe estava só pensando na quantidade de cocos tic-tac que teria que caçar depois. Meu irmão já estava desaparecido.

“Alguém vai ter que pegar esse bicho...” – disse minha mãe.

Naquela época, sempre que era dito que alguém deveria fazer alguma coisa, isso significava que as coisas sobravam para o meu pai. Saudade daquela época...hoje sobra para mim.

Meu pai, forçadamente, se prontificou de agachar e enfiar, num raio súbito, seu braço e agarrar aquela fugitiva maluca. Ele fez.

“Puta que pariu!” – ele gritou, tirando seu braço de modo tão rápido como o colocou, chacoalhando sua mão exaltadamente. Ela o havia mordido.

Isso significou algo óbvio: meu pai agora estava revoltado por ter levado uma dentada do bicho e , conseqüentemente, fora da jogada. Sobrou para mim. Minha mãe tinha medo de se enfiar lá e proibiu minha irmã de tentar. Desse tipo de coisa ninguém me proíbe, né?

Tomei coragem. Olhei por debaixo do móvel e a vi. Seus olhos de bolas de tênis brilhavam. Parecia insano. Ameacei esticar o braço. Ela colocou os dentões para fora. As patinhas da frente estavam coladas, como se arquitetasse um plano diabólico.Ela ria para mim, parecia o coringa. Maldito roedor!

Hesitei. Recuei.

“Vai lá!”

“Ela está brava! Ela vai me morder!” – eu repetia.

“Vou pegar a vassoura” – disse minha mãe

“Não!” – retruquei.

“Posso tentar, mãe?” – perguntou minha irmã.

“Não!”

“Ahhh”

Caramba, deixa ela, mãe!

Resolvi tomar água, com a desculpa que tentaria de novo.

Não sei descrever o que aconteceu depois. Ouvi uma gritaria, uma muvuca de móveis se mexendo e em seguida sequiosas gargalhas. Saí correndo com o copo na minha mão.

É numa hora dessas que uma máquina fotográfica faz falta. Minha irmã, postada e rindo, segurava com a mão esquerda o rabo da Chila que, de ponta cabeça e todas as patinhas abertas, estava como se estivesse congelada.

“Estátua da liberdade!” – gritava minha irmã, imitando aquele presente francês dado aos nossos amigos das batatas imperialistas.

Depois desse dia,meus pais começaram a perder a boa vontade com a Chila. Meu pai inventou de dar o miolo da maça para ela que, ao ver a figura careca e nariguda do sr. Bertollini, pôs-se de pé e soltou um jato de urina em seu rosto.

“Filha da puta!”

Ela não durou muito tempo em casa. Quero ver agora quem vai dizer que chinchilas são sem graça!

Obs: A Chila não foi bem meu primeiro bichinho. É injusto esquecer o Pavarotti, o Leleco e o Bird, nossos passarinhos. Sem contar meus primeiros peixes, cinco peixes que ganhei no Shopping D na exposição do fundo do mar. Eles levavam o nome dos integrantes dos Mamonas Assassinas e também tiveram uma passagem meteórica pela minha casa. Um dia eu conto minha história com peixes....

sábado, 16 de agosto de 2008

Intermitências da dor

Clementino acordou no cortiço de Nenê
Que era sujo, inacabado
Fedorento e não pintado
Como próprio Clementino havia de ser

Era mais um dia de trabalho
Na labuta de enxada e pedra bruta
Desgastante seu labor
Que nem mais sentia dor

Clementino era magro cor da terra
O suor pendia à testa
Pele grossa a encrostar
Desatina sem pudor

Nasceu ao sol pungente
Onde não se cresce gente
Em berço de solo seco
Sempre soube o que era dor

Maceta aqui, maceta ali
E foi durante a macetada
Que conheceu Maria Dalva
A menina recalcada o fazia retrair

Clementino deixou-se apaixonar
Levando um tiro e um sopapo
Uma calcada de soslaio
Da doença que é o amor

Tomou coragem
E pra não perder viagem
Uma caixa de bombom
Clementino encomendou

Chegando a ela
Ele se apresentou
Embasado de ternura
Nosso herói se colocou

“Moça bonita, o que fazes tão sozinha?
Se quiseres companhia
E uma tarde de alegria
Clementino, aqui estou!”.

De cima abaixo, a rapariga o reparou
E como quem esmaga um sapo
A menina retrucou

“Olhe pra si, desleixado capial
Uma moçoila como eu
Que sozinha nunca está
Não se mistura com um tal”

Por trás dela, um mancebo apareceu
De mansinho e fino trato
Com olhos e nariz de rato
Clementino emudeceu

O mancebo era o Mário João
O rapaz era sinistro
Tinha mais pelo no umbigo
Que amor no coração

Amedrontado,Clementino se encolheu
Implorou um padre nosso
Mas Jesus estava ocupado
E Ele não o atendeu

Levou três socos e depois foi despojado
Num terreno abandonado
Catarrento e humilhado agradecendo o milagre
Por não ter sentido dor

Enclausurou-se no seu fundo
Magistral aquele mundo
Profuso e sem desejos
Que era cego, surdo e mudo

Pôs-se , assim, a caminhar
Sua vontade era achar
De qualquer forma algum lugar
Que pudesse celebrar
Sua vida de apatias eremitas
Sem qualquer perspectiva
Do que era boa história
Do que era boa vida

Andou mesmo que coxo
Sem critério e sem esforço
E avistou de jeito turvo
Ainda que com olho roxo
O dizer “Clementino, venha cá”

Era o bar a o chamar
O lugar a se instalar
A cadeira de madeira
Repetia “Clementino, venha cá”

Bebeu, cantou, dançou
O andarilho Clementino
Numa gingada estapafúrdia
Sem demorar se embriagou


Tomado por uma coragem jururu
Atirou-se na represa
Pondo fim a sua passagem
De enxadas e pedradas
Não sem antes agradecer
A Jesus Cristo Salvador
Por nunca tê-lo feito sentir dor.