segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O Homem da Tesoura

Sexta-feira, 13.

Rezende depara-se, assustado, com a manchete principal de O Popular:

Homem da Tesoura escapa da prisão


Responsável pela morte de dezenove pessoas nas últimas semanas, nove homens e dez mulheres, o Homem da Tesoura escapou da prisão na tarde desta quinta feira (12) por volta das 15:15 e permanece foragido, desde então.

Otaviano Olinda (foto), 33, conhecido como o Homem da Tesoura por cortar os membros masculinos e enfiá-los nas bocas de suas vítimas (no caso das mulheres, arrancava os mamilos) e ainda picotar todos os dedos com uma tesoura de jardineiro, fora preso na noite desta segunda-feira por aquele que por pouco não tornou-se sua vigésima vítima e décimo homem, o dermatologista Clarindo Nunes, 63.
O médico afirma ter conseguido escapar do assassino após golpeá-lo na cabeça com um pedaço de ferro, jogado à rua.

Frio e inexpressivo, Otaviano relatou à redação de O Popular que sentia-se tranqüilo quanto a sua pena e seus crimes, e que não sentia-se culpado pelos atos vis cometidos:

“Não me arrependo de nada” era o tipo de resposta, aparentemente ensaiada, que Otaviano pronunciava a qualquer tipo de pergunta efetuada pelos diversos jornalistas presentes na coletiva realizada na vigésima delegacia de polícia, Centro de São Paulo. “Durmo tranqüilo”.

Provado clinicamente seus transtornos bipolares e psicóticos, Otaviano passou a apavorar a cidade quando se deu a bizarra notícia de mãe e filho, Maria Lourdes (40) e Mario João (10), encontrados devidamente mortos com as marcas supracitadas, em plena Marquise do Parque do Ibirapuera. Desde então, casos idênticos ocorreram em intervalos de tempo semelhantes durante este mês de outubro.

“Tinha medo de sair de casa” afirmou a professora Silvana Arantes à época.

A fuga do Homem da Tesoura está sendo averiguada pela polícia, que ainda o procura incessantemente desde quinta. “Não vou desistir até colocar este assassino atrás das grades novamente”, afirma, veemente, o delegado Pigarço. “Ele é um doente, altamente perigoso, incapaz de distinguir o certo do errado, perigosíssimo para a população paulistana. Não admito um selvagem deste solto”.

Quando perguntado qual seria seu maior temor, o delegado Pigarço foi franco: “Temo que Otaviano esteja à procura de um homem. Ele admitiu-se desgostoso com o fato de não ter conseguido matar o mesmo número de homens e mulheres”

Restante da matéria: 3b,4b,5b e 6b.

Rezende não chegou a ler as outras páginas. Jogou o calhamaço de papel sobre o banco ao lado, ao modo que a foto estampada de Otaviano o encarasse: seus cabelos aparentemente sebosos soltos, o nariz adunco, sobrancelhas grossas, olhos amendoados, a pele clara e a pinta sobre a bochecha direita riam cinicamente para o leitor apavorado.

Incomodado, Rezende preferiu voltar sua atenção para o cafezinho no copinho de isopor que esfriava. Tomou tudo em um gole só, o que fez arrepender-se, ao reparar que o líquido não estava tão ameno assim. Amassou-o, enfiando-o de qualquer jeito no saquinho de lixo pendurado no câmbio de seu Corsa 98, girando a chave na ignição do automóvel.

Deu a partida e resolveu começar sua labuta o quanto antes. Sua vista, que já não era das melhores, mas raramente o enganava, o avisou, sem pormenores, que em breve choveria. E forte.

*

Chovia. Forte.
Uma cortina prateada engolia o Corsa 98 de Rezende de maneira presunçosa, como se estivesse brincando com ele de maneira a irritar.

Rezende não havia conseguido muitos clientes naquele dia tempestuoso e friorento. As calçadas estavam vazias de gente enquanto as ruas se encontravam completamente congestionadas: o que seria um excelente motivo para faturar-se alto, acabou tornando-se uma completa perda de tempo. E de gasolina.

Entretanto, sua vista cansada, porém eficiente, mesmo com aquele turbilhão de água que caía do céu, o denunciou aquilo que poderia ser um cliente.
Notou que era um homem agasalhado com uma capa de chuva amarela, braço direito estendido para que o taxista o visse enquanto o esquerdo segurava uma maleta de ferro.

Rezende buzinou ao passar pelo rapaz, parando o carro mais a frente, visto a impossibilidade de estacionar o velho Corsa frente a um bueiro entupido.

Parou na esquina. Pelo retrovisor, enxergou o homem correr apressadíssimo até o carro, evitando atolar suas pernas em buracos ou encharcá-las de vez em alguma poça de água. Destravou as portas ao vê-lo aproximar-se.

- Tarde – disse Rezende, gentil, ao ter certeza de que seu cliente já estava devidamente confortável no banco traseiro.

- Efigênio Duarte – respondeu.

- Pode me chamar de Rezende. Prazer – retrucou simpático.

- É a rua... – disse o homem de maneira óbvia – Vai pela ponte, por favor.

- Ah, sim...

Silêncio.

- Que chuva, hein? – disse Rezende após longos minutos de mudez, vidrando os olhos no retrovisor e olhando para o homem.

- É...

Silêncio novamente. Todavia, Rezende prosseguiu com sua vista pousada no espelho.Ele não me é estranho, pensava.

Desde então passou mais tempo com os olhos erguidos, tentando decifrar a figura ensopada no banco de trás, do que olhando para frente enquanto dirigia.

Farol vermelho.

Rezende freou o carro colado com o da frente. Notou que o passageiro passou a perceber os olhares furtivos, incomodando-se. Tirou os olhos do espelho com rapidez, tentando disfarçar, pousando-o em qualquer canto que fosse. Inconscientemente, seu rosto girou para seu lado direito, guiando seus olhos até o calhamaço de jornal jogado no banco ao lado. Foi quando percebeu que o nariz adunco, a barba rala e o cabelo seboso do passageiro não eram apenas fruto de lembranças de uma vida passada.

Rezende gelou. Da cabeça aos pés, sentia frio. Um gelado angustiante e pesado o fazia tremer as mandíbulas.

Minha Nossa Senhora! Não pode ser! O Homem da Tesoura aqui atrás! Dentro do meu carro! pensava.

O farol abriu meio que de repente, e Rezende por pouco não deixou seu Corsa 98 morrer, fazendo-o andar trepidante.

As ruas giravam. A impressão que tinha era que não demoraria tanto para algum carro se enfiar dentro de seu pára-brisa. Atordoado, começou a suar.

- Ei! – gritou o passageiro.

- Ah?! – respondeu Rezende, perturbado.

- Fica na faixa da ponte! É pra você pegar a ponte! – Rezende deu seta e andou na faixa certa.

Assassino! Miserável! Maldito!

- E vê se vai rápido. Tenho...compromisso.

Acelerou. Não posso deixar isso acontecer! Esse assassino vai matar mais alguém! E se eu não fizer nada, a próxima vítima serei eu. Acelerou ainda mais, ultrapassando os carros a sua frente despretensiosamente. Você matou crianças! . Suor. Destruiu famílias! . Apertava com força o volante. Destruiu sonhos!. Cento e vinte quilômetros por hora.

- Vai com calma, velhote!

- O que é que você tem aí nessa mala?! – perguntou gritando, a garganta doendo e os olhos ardidos. Acelerou ainda mais.

- Que te interessa?! Diminui aí, velho do caralho!

- Abre essa mala e me mostra o que você tem dentro dela! – gritou ainda mais, a plenos pulmões, voz rasgada e olhos vermelhos, lacrimejados.

Instantaneamente, o homem abriu a maleta e arrancou aquilo que fez Rezende urrar de fúria, erguendo uma enorme tesoura de jardineiro.

- Ta satisfeito, velho de merda?! Eu não vou pagar essa corrida! Agora anda direito antes que eu te arranque o pau fora!

- Seu monstro! – Rezende enfiou o pé no acelerador como se estivesse pisoteando uma jaca.O carro deslizava com ignorância rapidez .

- PÁRE!! – gritou desesperado, erguendo a tesoura sobre a cabeça de Rezende.

Pelo retrovisor, o taxista reparou naquela arma apontada para seu cocuruto e seguiu seu instinto animal de sobrevivência.

Girou volante completamente para a esquerda. O carro virou com esplendorosa força, arrebentando a guia que separava dos motoristas o abismo com água no remate.

Rezende fechou os olhos e largou o volante, abrindo os braços, como se estivesse mergulhando em uma piscina de água funda, ou se entregasse de corpo e alma àquele que mais confiava no planeta.

Os gritos reverberavam de maneira lenta. Leve, Rezende desdenhou rindo daqueles que se gabavam por andarem de avião. Até chegou a pensar nas asas invisíveis de seu simpático Corsa 98, que o levaria da terra à água, da sombra à luz, do anonimato à eternidade.

*
Antes de embrulhar o peixe, o feirante lê com esforço a notícia principal da primeira página de O Popular.


O Fim da Linha

Foi preso em flagrante, ontem, às 21:35, Otaviano Olinda – O Homem da Tesoura – após assassinar o dermatologista Clarindo Nunes.

Otaviano fora rendido enquanto executava seu ritual pós morte...

- Esse sim ficou na mão – disse para si mesmo, já cansado de ler a notícia em letras miúdas do jornal, deixando cair ao chão a nota que dizia a respeito do táxi que perdera o controle na ponte Itamar Franco e afundara-se no rio sob o viaduto. A perícia suspeita de aquaplanagem.