segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O Escritor

A pior parte era quando faltavam palavras.
Já estava tudo pronto: a ideia central, o começo, o meio, fim, nomes e até alguns diálogos. Mas não havia coisa pior para Júlio quando faltavam palavras para expressar tudo aquilo que já tinha forma na cabeça.
Quando pequeno, gostava dos desenhos. Passou a rabiscar os próprios quadrinhos quando ganhou do pai um estojo de lápis de cor. Era habilidoso, sem dúvida. Não na parte gráfica. Facilmente uma pessoa poderia ser confundida com uma casa, assim como uma ovelha chegou a ser entendida como navio por sua mãe, dona Elisa, sua maior fã. O que chamava a atenção de todos era a facilidade de Júlio de criar histórias.
- É um talento raro! – ouvia.
Na escola, destacavam-se as redações e as altas notas em Português.
- Em biologia seu filho é um desastre, dona Elisa, e em exatas então... – disse a professora, certa vez – Mas seus textos compensam.
Júlio não era muito chegado em esportes (era constantemente o último a ser chamado na montagem das equipes de educação física e também não era raro esquecerem sua presença, com os times sendo fechados antes mesmo de Júlio dar-se conta que não fazia parte de lado algum), logo não costumava ser o centro das atenções na ala masculina.
Seu protótipo ajudava: gorducho, atrapalhado. Foi o primeiro da turma a ter barba e o último a querer livrar-se dela. Atraía pessoas semelhantes, sendo que sua primeira namorada chegou a ser cumprimentada por seu pai com um forte tapa nas costas e um aperto de mão.
Ingressou na faculdade de jornalismo. Participava de concursos de redação e raramente ficava fora do pódio principal. Sua escrita chamou a atenção de pessoas ligadas ao Expressa Geral, o jornal da faculdade em que assumiu o posto de cronista sem esforço.
- Você é um talento raro, Júlio! Você escreve muito bem, é invejável – dizia seu chefe – E suas histórias são muito legais, muito gostosas de serem lidas. Tenho certeza que você conseguirá lidar com este cargo com um pé nas costas.
O único problema do Expressa Geral é que ele era um jornal de universidade. Logo, não era lido por praticamente ninguém. Por isso ficou espantado quando fora obrigado a parar de tentar encontrar palavras em algum lugar perdido de sua cabeça grande, enquanto escrevia sozinho em uma mesinha de cimento de seu centro acadêmico.
- Você é o Júlio, né? – ouviu. Largou a caneta e olhou para cima – Do jornal...?
- Sim – respondeu atônito. Não só por ser reconhecido, muito menos por supor ser lido por alguém. O que o deixou boquiaberto foi o alguém.
Ela apresentou-se como Laís. Como se precisasse. Todo mundo sempre soube da Laís.
Alta, magra, loira. Seus cabelos cor de mel desciam pela cabeça, planavam no ar e aterrissavam nos ombros como a leveza de plumas. Seus doces olhos verdes gritavam, como se exigissem atenção e sua boca rasgava sorrisos brilhantes tal qual cometas que riscam a noite.
- Você está ocupado? – perguntou.
- Não – disse após um pigarro – Pode falar – Júlio não conseguia desgrudar de seus olhos de esmeralda.
- Há tempos que tenho ouvido falar de você...
- Duvido muito – respondeu simpático após a pausa da garota para arrumar o cabelo e puxar uma cadeira para sentar-ser. Tinha cheiro de fruta.
- Não seja modesto – respondeu. Dentes perfeitos a mostra – Todos nós já lemos algum de seus textos. São ótimos.
- Muito obrigado.
- Aliás, o seu último na edição da semana passada foi excelente. Surpreendente! Eu não esperava por aquele final, que virada!
- Muito obrigado novamente. Eu tento fazer o meu melhor.
- E faz, não há dúvidas – respondeu com sorriso largo, pousando sua mão delicada sobre a calejada de Júlio.
Ele observou a cena durante silenciosos segundos. Seus olhos se encontraram novamente. Laís prosseguiu:
- Sabe, Júlio...Não sei se você soube o que houve com o professor Laerte...
- Não. Quem é esse?
- Professor de literatura. Lecionava nos cursos de letras, alguns em comunicação. Era um gênio das palavras, um grande poeta.
- Era?
- Sim. Ele faleceu há quinze dias, foi uma grande perda. Era muito querido.
- Eu soube de um professor que morreu...latrocínio, né?
- Uma tragédia...
- Sinto muito – respondeu complacente com o rosto murcho da garota. Era perfeita mesmo triste – Mas o que é que tem? – prosseguiu.
- Ele fazia parte do grupo de teatro da faculdade, o qual eu também faço parte. Era nosso roteirista. Escrevia as peças junto com o professor Horácio, que dirige os espetáculos.
- Uhum...
- Com o falecimento do Laerte, o Horácio não está dando conta do recado sozinho. Está muito deprimido e se afundando na bebida. Dizem que ele é alcoólatra em fase de recuperação mas teve essa recaída, coitado.
- Nossa...
- Eu vim procurá-lo para saber se você tem o interesse de trabalhar conosco, como roteirista. O que você acha? Vim em nome de todo o grupo e com o consentimento sóbrio do próprio professor Horácio.
- Eu...ah... – Júlio não esperava por aquilo. Laís apertou sua mão e vidrou-o com seu olhar de sereia. Acabou aceitando.
Conheceu a equipe no dia seguinte, conforme havia combinado.
- Seja bem vindo, Júlio – disse o magro professor Horácio, com o rosto chupado, olheiras fundas, barba mal feita e um singelo aroma de vodka na fala – temos muito a conversar.
O professor era simpático, porém ausente. Suas enormes recaídas o afastavam com frequência do grupo que, aos poucos, era dominado por Laís.
Em uma das poucas conversas frugais que Júlio e Horácio tiveram, o professor dera carta branca ao novato. A história que quisesse, do jeito que quisesse, da maneira que ele achasse melhor. Júlio desconfiou que isso se dava ao fato da falta de ritmo de Horácio para com seus compromissos, mas não se importou. Sua história ficou pronta em menos de uma semana, tamanha empolgação.
Durante esse período e, principalmente depois, Júlio descobriu dezenas de coisas, entre elas que Laís era, sem nenhuma sombra de dúvida, sem margem de erro, uma tremenda vaca.
Megera. Venenosa. Ruim
Ela era capaz de destruir um ambiente amigável em questão de segundos. Víbora.
- Rogério, isso está uma merda! Meeeeerdaaaaa – gritava, chiliquenta.
Com a ausência de Horácio, Laís intitulou-se diretora por fazer parte do grupo há mais tempo, achar-se melhor atriz e mais bonita que o restante.
- Luíza, eu serei a protagonista – disse após uma discussão – Você é do avesso – segurava o script com a ponta dos dedos, como se estivesse com nojo – Precisa nascer mais três vezes para ser, no mínimo, razoável. Eu serei a protagonista e ponto final.
O ódio de Júlio passou a tomar conta de seu corpo quando Laís começou a intrometer-se em seus textos.
- Júlio, isso aqui não faz o menor sentido...
- Lógico que faz, Laís.
- Como? Ele morre do nada?
- Você leu o script inteiro?
- Não...Só minhas falas.
Era uma menina mimada e desprezível.
- Júlio, você não sabe escrever! Isso é uma grande porcaria!
O mundo parou por alguns minutos. Sua cabeça rodou e seu sangue ferveu. Um monstro nasceu de dentro de seu estômago e, descontrolado, passou a vomitar enormes labaredas.
Engoliu em seco. Se não tivesse ouvido isso um dia antes da apresentação oficial, teria mandado-a aos raios que a partam.
Ele não sabia o motivo por tamanho desprezo. Ela era a protagonista e era, sem dúvida, uma ótima história.
- Ela faz isso quando não tem o que argumentar, não ligue – disse Luíza que, de fato, era horrorosa. Precisava melhorar muito para ser feia. Porém muito mais talentosa que Laís.
O descontrole total surgiu no dia do espetáculo.
O anfiteatro estava lotado. A peça fora tratada pela universidade como um evento imperdível. Pessoas disputaram a tapa um ingresso daquilo que seria um espetáculo memorável.
- Júlio, preciso falar com você. Venha cá – disse Laís, no camarim.
- O que é?
- Tome – bateu um pedaço de papel em sua mão com uma lista – Preciso disso.
- O que é isso?!
- Coisas que eu preciso. Vou sair depois da apresentação e ainda não tenho esses itens.
- Gloss?
- Quero que vá agora – respondeu, como se Júlio não tivesse dito nada anteriormente.
- Agora?!
- É surdo? – perguntou enquanto maquiava-se
- A peça vai começar agora! A peça que eu escrevi!
- Você já sabe o que vai acontecer, não precisa ficar – disse, rindo – afinal, foi você mesmo quem escreveu. E é melhor que você vá antes que eu risque seu nome dos créditos. Você sabe que os alunos do corpo de teatro têm bolsa de estudos na faculdade e, do modo como você se veste, acho que precisa dela. E muito.E..tome isso também – bateu-lhe no peito uma calculadora enorme – Para calcular o troco. Uma pena que seja tão ignorante em matemática. Devia parar de ler Dostoievski e se preocupar de vez em quando com aritmética.
Por quê? Por quê? Quem era aquela megera para falar aquelas coisas? Ela não sabia nada da vida de Júlio! Nada!
Não passava de uma aproveitadora dissimulada, uma egoísta sem escrúpulo, uma nojenta! Júlio andava atordoado pelos corredores da universidade. Suava. Enxugava a testa com as mangas. Seus olhos lacrimejavam. Ele não merecia isso. Ela era um bom rapaz! Batalhador, talentoso. Não podia deixar-se abalar por uma mesquinha como aquela, e não daquele jeito.
- Eu não vou é porra nenhuma! – disse, batendo as mãos nos chãos.
Decidido, voltou. Abriu as portas do teatro. A peça já havia começado. Estava no meio do primeiro ato.
Foi então que seu mundo caiu, mais uma vez.
- Que merda é essa...? – perguntou para si mesmo, em voz alta, enquanto a mesma morria ao vento.
Aquilo não era sua peça. Não era sua história!
- Não é possível...
Zonzo, apalpava as paredes para locomover-se. Não estava creditando no que seus ouvidos escutavam.
Laís mudara suas falas. Dizia coisas desconexas, de poetizas em formação que insistem em lamuriar textos sem necessidade, a fim que seu parceiro de cena, Rogério, não passasse de um objeto tão nulo quanto o tablado do próprio palco.
Não. Aquilo não.
Na lateral, em pé, bufava. Apertava com força a calculadora até seus dedos doerem. Tremia.
Num instinto que não soube explicar posteriormente de onde viera, Júlio arremessou a calculadora no palco com toda sua força. Viu-a voar como um pomo sem asa, dardejando como um projétil sedento por seu alvo. A calculadora rodava tal qual uma bailarina e atingiu a cabeça com a força de uma marreta que destrói o muro. A cabeça errada.
O objeto espatifou-se, e o chapéu de Rogério parou bem longe de sua cabeça desmaiada. Caiu que nem pedra.
Júlio gelou. Parado, sentiu os corpos virarem-se em sua direção, fuzilando-o com o olhar. O silêncio só permitia ouvir os gemidos de Rogério, estatelado no chão.
Deixou que os seguranças levassem seu corpo grande para fora do teatro sem pestanejar, não ligando para as acusações da plateia e para os dedos em riste de acusadores desinformados.Xingou-se, mesmo sabendo que não era sua culpa.
Maldita calculadora. O teatro teria visto o verdadeiro espetáculo se estivesse com um Crime e Castigo na mão.