sábado, 16 de agosto de 2008

Intermitências da dor

Clementino acordou no cortiço de Nenê
Que era sujo, inacabado
Fedorento e não pintado
Como próprio Clementino havia de ser

Era mais um dia de trabalho
Na labuta de enxada e pedra bruta
Desgastante seu labor
Que nem mais sentia dor

Clementino era magro cor da terra
O suor pendia à testa
Pele grossa a encrostar
Desatina sem pudor

Nasceu ao sol pungente
Onde não se cresce gente
Em berço de solo seco
Sempre soube o que era dor

Maceta aqui, maceta ali
E foi durante a macetada
Que conheceu Maria Dalva
A menina recalcada o fazia retrair

Clementino deixou-se apaixonar
Levando um tiro e um sopapo
Uma calcada de soslaio
Da doença que é o amor

Tomou coragem
E pra não perder viagem
Uma caixa de bombom
Clementino encomendou

Chegando a ela
Ele se apresentou
Embasado de ternura
Nosso herói se colocou

“Moça bonita, o que fazes tão sozinha?
Se quiseres companhia
E uma tarde de alegria
Clementino, aqui estou!”.

De cima abaixo, a rapariga o reparou
E como quem esmaga um sapo
A menina retrucou

“Olhe pra si, desleixado capial
Uma moçoila como eu
Que sozinha nunca está
Não se mistura com um tal”

Por trás dela, um mancebo apareceu
De mansinho e fino trato
Com olhos e nariz de rato
Clementino emudeceu

O mancebo era o Mário João
O rapaz era sinistro
Tinha mais pelo no umbigo
Que amor no coração

Amedrontado,Clementino se encolheu
Implorou um padre nosso
Mas Jesus estava ocupado
E Ele não o atendeu

Levou três socos e depois foi despojado
Num terreno abandonado
Catarrento e humilhado agradecendo o milagre
Por não ter sentido dor

Enclausurou-se no seu fundo
Magistral aquele mundo
Profuso e sem desejos
Que era cego, surdo e mudo

Pôs-se , assim, a caminhar
Sua vontade era achar
De qualquer forma algum lugar
Que pudesse celebrar
Sua vida de apatias eremitas
Sem qualquer perspectiva
Do que era boa história
Do que era boa vida

Andou mesmo que coxo
Sem critério e sem esforço
E avistou de jeito turvo
Ainda que com olho roxo
O dizer “Clementino, venha cá”

Era o bar a o chamar
O lugar a se instalar
A cadeira de madeira
Repetia “Clementino, venha cá”

Bebeu, cantou, dançou
O andarilho Clementino
Numa gingada estapafúrdia
Sem demorar se embriagou


Tomado por uma coragem jururu
Atirou-se na represa
Pondo fim a sua passagem
De enxadas e pedradas
Não sem antes agradecer
A Jesus Cristo Salvador
Por nunca tê-lo feito sentir dor.

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