quinta-feira, 1 de abril de 2010

Pela manhã

Nélio passou a detestar sua música favorita quando resolveu usá-la como despertador de seu telefone celular.
Eram seis e trinta e cinco da manhã de segunda-feira. Os raios de sol que emanavam da janela do sexto andar do edifício Towers Towards, Alameda Jaú, Jardins, batiam em seu rosto sem pedir licença, como visitantes inconvenientes e desagradáveis.
- Bosta de sol – resmungava – Bosta de música – concluía com dor no coração.
Seu banho se estendia por longos e desnecessários minutos e tomava o café sem a mínima pressa – ele não tinha pressa alguma de chegar ao trabalho, ou bosta de trabalho, como costumava resmungar pela manhã – brincava com os pedaços de pão, àquela hora borrachento, jogados em seu prato e amassava os cristais de chocolates não consumidos pelo leite, completamente azedo em sua boca, em sua caneca do Santos.
- Bom dia, filho – dizia sua mãe.
Sua resposta era um grunhido indecifrável, o que já havia se tornado rotineiro: ao invés das frases prontas matinais, respondia uma conjunção desconexa de vogais e consoantes sorteadas a esmo. Acordar de manhã cedo era realmente um saco – ou uma bosta. Para Nélio, era sempre uma bosta.
Subia a Joaquim Eugênio com um óculos de sol jogado à face e a mochila pendida no ombro esquerdo. Com a mão direita carregava o último exemplar da Rolling Stone americana (a brasileira era uma bosta) com o rosto bocudo do Steve Tyler estampado na capa (Why are they mad?) e, aos seus ouvidos, a voz agradavelmente chorosa do Morrissey agonizava, relembrando-o que as coisas muitas vezes poderiam ser infinitamente piores que uma segunda-feira de manhã. Os Smiths até que eram reconfortantes.
- Sweetness, Sweetness I was only joking when I said I´d like to smash every tooth in your head... – cantarolava.
Chegando à Avenida Paulista, virou a direita. A estação Brigadeiro não era longe dali, apenas algumas quadras. Entretanto, sua passada vagarosa cadenciava o ritmo empolgante que sentia dentro de seu coração para mais um longo e tedioso dia de estágio.
Com calma, admirava o emaranhado de carros que riscavam o asfalto liso e disputavam a buzinada mais alta. Via seu reflexo nos prédios envidraçados e indignava-se com seu cabelo que insistia em não abaixar, tropeçando em um mendigo que dormia bêbado na calçada, coberto por um saco de batatas.
Julgou ser xingado, mas não ouviu: estava na porta da estação e já se encontrava frente a frente com a escada rolante.
Ah, que insuportável! Aquela gente, aglomerada, sem educação. Esbarra-esbarra, sovaqueira, o cheiro azedo de suor. Um comboio de pessoas que não terminava, espremidas, entrelaçadas em suas próprias cadeias de problemas, que se roçam e se tocam como íntimos desconhecidos. Nélio sente todos, assim como todos os sentiam: pela pele absorvia o estresse inacabado do macio terno de cetim do advogado engravatado a sua frente, entendia as dores da doméstica espancada pelo marido alcoólatra na noite anterior, a fome do estudante que deixara de tomar café da manhã para queimar seu baseado escondido dos pais que já tinham saído para o trabalho havia muito, os problemas fúteis da garota magra esnobe (To gorda!) e os demônios do pastor que não entendia sequer o sermão mais fácil que pregava.
Na plataforma sentia-se mais livre, mesmo que por pouco tempo. O trem rumo à Sumaré já havia freado e sua porta deslizado para seus cantos correspondentes.Entrou no primeiro vagão por ser, supostamente, o mais vazio – que não estava.
Colocou-se em pé entre as cadeiras ocupadas e as paredes da cabine do maquinista, de frente para as janelas fechadas. Apoiou sua cabeça e fechou os olhos.
- Agora é só esperar... – comentou consigo mesmo.
Seus olhos abriram na mesma instantaneidade com a qual os fechou. Sentiu novamente o toque, agora ombro a ombro. Mas desta vez gostou do que sentiu.Não se preocupou em olhar para os lados, limitando-se apenas em ver de esguelha.
A menina tinha o mesmo tamanho que ele e, provavelmente, a mesma idade. Pele dourada e cabelos negros. Era interessante: não tinha um nariz grande e suas feições eram simplórias, para não dizer delicadas. Parecia ser bonita, pelo menos de perfil...
- Moço...
- Oi? – tratou de responder Nélio, tirando o fone do ouvido.
- Moço... – repetiu.
- Sim... – moço?!
- Tem como você abrir a janela, por favor?
A resposta de Nélio foi gestual, erguendo os ombros e torcendo a boca. Viu-se fazendo o favor, abrindo-a.
- Obrigada.
- Nada...
Voltou a sua posição original, apoiando a cabeça novamente e fechando os olhos.
O toque se estendeu.
Desta vez, seus braços se tocaram. Sentiu aquela troca de energia que só o transporte público conseguia propor. Suave e morno, o toque era bom. Seus pelos conversavam e se acariciavam como um casal recém formado de adolescentes apaixonados. Nélio não se mexeu.
Abriu os olhos e tentou verificar o rosto da garota pelo espelho. Em vão. Imagem desfocada, enxergava apenas um borrão. A janela aberta dificultava, refratando a fonte daquela sensação verdadeira e serena.
A garota moveu-se. Para mais perto. Ouviu um suspiro, e não era dele. Decidiu mover-se também, colando ainda mais ao seu lado. Suas peles estavam coladas, grudadas. Seus cotovelos dividiam o mesmo espaço de apoio.
Olhou mais uma vez para o espelho. Como será seu rosto? Por que é tão difícil separá-lo do espelho? Por que é tão difícil encontrar aquilo que está justamente ao lado?
Sua cabeça rodopiava. Virar o rosto despretensiosamente? Não parecia uma boa opção, poderia assustá-la. Puxar assunto? Não, melhor não...
- Estação Clinicas.
A garota moveu-se de novo. Esguia, postou-se firme. Era hora de sua partida e a última chance de Nélio descobrir se aquele rosto indecifrável era do jeito que desenhava na cabeça.Pensou em cutucá-la, como se fosse um acidente. Mas ela já tinha andado e saído do vagão.
A janela mostrava apenas suas costas e seu rebolado apressado. Nélio apoiou sorrateiro sua cabeça na parede e suspirou fundo conformando-se, até certo ponto entristecido, de que não havia perdido grande coisa – mentindo a si mesmo, claro. Ele sabia que ninguém perde pouca coisa em uma segunda-feira de manhã.

3 comentários:

Aline Khoury disse...

curti mto, bioni! leitura gostosa e fluida. vou começar a ler os antigos tbm pq gostei mto do seu estilo.

Bruno Victor disse...

Muito bom texto Vini, até a parte do encontro com a garota bonita eu me identifiquei muito com o Nélio,hahah, a diferença é que só esbarro em gordas e baranga,rsss :)

disse...

O Nélio, pra mim, tem outro nome...
Amei, as usual...