segunda-feira, 26 de julho de 2010

A Passadeira

Quando entrou pela primeira vez na casa de Dona Quitéria, Dolores assustou-se:

- Jesus amado... – disse a si mesma.

Era experiente, tinha vivência. Já havia passado por casas dos mais variados tamanhos e estilos arquitetônicos, dos mais discutíveis gostos decorativos e das mais abrasivas variantes de donos e donas, senhoras e senhores, patrões e patroas. Mas era primeira vez que via, em toda sua vida, uma casa do tamanho da de Dona Quitéria.

- Não é tão grande quanto parece. Com o tempo você se acostuma – respondeu ao suspiro exclamado pela visitante – Você vai ver só... – disse, simpática.

Dolores consentiu. Não havia nada que pudesse fazer, afinal de contas. Apenas o seu trabalho bem feito. E isso, Dolores sabia, era indiscutível.

Estava já habituada com grandes desafios. A primeira casa que limpara fora a sua própria. O barracão da Rua Quinze na Ceilândia, quando ainda morava em Brasília, costumava ser tratado com carinho pela mãe que alternava as faxinas entre a própria casa e a dos outros – jurava já ter limpado pessoalmente a poeira do pé de Emílio Médici enquanto varria a varanda do Palácio do Planalto após uma ventania de poeira que fizera o então presidente ter sérias crises de tosse. As pessoas duvidavam disso.

Dolores passou a ajudar a mãe após as várias horas de trabalho constante e, não tardou, percebeu levar jeito para a coisa.

Ao mudar para São Paulo, Dolores encontrou na faxina seu ganha pão. Não era estudada, e a sina injusta posta à sua vida não permitira que a então jovem mulher desenvolvesse certas habilidades e dotes próprios. Diziam que cantava bem.

- Este aqui é o seu quartinho – disse Dona Quitéria com simpatia – Tem essa cama, o armarinho, essas gavetas... Enfim, sinta-se em casa, por favor.

Tímida, Dolores sentou na cama e trocou sua roupa pelo uniforme de trabalho. Prendeu os cabelos negros, curtos e cacheados, num coque de última hora. Vestiu seu avental verde, cobrindo-o com um babado branco e trocou os sapatinhos de veludo pelo chinelo velho. Dolores estava pronta para seu primeiro dia de trabalho na casa de Dona Quitéria.

- Ah, que bom que já está arrumada. Venha cá, quero lhe apresentar minha família – disse a dona da casa – Esta aqui – prosseguiu quando Dolores fixou-se ao seu lado – é Naiara, minha filha mais velha; Eurico, o caçula; Jaime, meu marido e minha mãe, Valmira.

Acenaram sem muita firmeza, como se estivessem se sentindo obrigados a cumprirem a formalidade. Dolores retribuiu com um aceno de cabeça e um rosto risonho antes de todos se dissiparem e desaparecerem, cada um para seu respectivo canto.

- Bom... – retornou a patroa – você me foi muito bem recomendada, tenho certeza que vai tirar isso de letra. Tem alguma especialidade?

- Olha, Dona, eu cozinho bem e sou caprichosa, limpo direitinho – disse – Mas, modéstia a parte, sou uma passadeira de mão cheia – gabou-se, com notável simpatia.

- Ótimo! – respondeu Dona Quitéria – Eu e meu marido iremos trabalhar, a casa ficará por sua conta. Minha mãe estará aqui, caso precise de ajuda. Tem também as crianças.

As crianças, que de crianças nem tamanho tinham, significavam a mesma coisa que nada em valor de utilidade para alguma coisa, assim como a avó, uma múmia empapada que passava o dia inteiro sentada à frente do sofá assistindo petrificada televisão, o que preocupou Dolores na primeira vez, pois colocou em dúvida se a velha estava viva ou morta.

Não chegou a pensar que fosse maldade de sua parte desejar a morte a alguém que flertava com a mesma diariamente. Mas passou a preocupar-se quando se via imaginando esganando os três durante todo o período em que Dona Quitéria e Seu Jaime estivessem longe.

- Eu quero cachorro quente! – gritava Eurico no ouvido de Dolores enquanto a mesma passava sua roupa.

- Sua mãe não comprou salsicha...

- Não interessa! Eu quero cachorro quente! – esperneava o garoto mimado, que pisava no chão com força, balançando suas tetas pontudas e sua papa esticada.

- Mas eu não posso fazer! Não tem isso aqui e estou fazendo outra coisa!

- Ai, Dolores, faça logo! – dizia Naiara, ao entrar na cozinha, com o telefone celular no ouvido, puxando alguns pacotes de bolacha da dispensa, vestindo um top e micro shorts e exibindo seu corpo magro por onde quer que andasse. Dolores sentiu-se incomodada na primeira vez que vira a garota apenas de calcinha, andando pra lá e pra cá, tagarelando no celular. “Tô na minha casa, ando como quiser” – gritou na ocasião.

Dolores não respondeu. Continuou com seu serviço até Eurico puxar o ferro da tomada.

- Eurico!

- Faça logo o que estou mandando! Eu pago você pra fazer o que eu quiser!

- Não grite, Eurico! – esbravejou Naiara – Não vê que estou no celular?! – justificou abocanhando um pedaço de biscoito, deixando cair mais comida no chão do que dentro de sua própria boca – Dolores, limpe.

Era assim todos os dias. Os filhos importunando e a velha estática em seu lugar. Levantava vez ou outra, sempre em direção a Dolores para dizer que, o quer que estivesse fazendo, estava uma merda.

- Você fala que é passadeira? Que merda de roupa! – ralhava. E ia embora.

O tempo foi passando e as coisas piorando. Não existia mais limites dentro daquela casa. O som alto da televisão que Valmira assistia disputava com o proveniente do quarto de Naiara, que costumava trazer alguns amigos para festas rápidas e escondidas em seus aposentos.

- Se você falar alguma coisa pra minha mãe, Dolores, eu a faço demitir você. Entendeu?

A entrada de Dolores era proibida no quarto de Naiara. Vivia trancado. Já o de Eurico era escancarado. Não foram poucas as vezes que flagrara o garoto masturbando-se sobre sua cama. Já o vira transando com os bichos de pelúcia da irmã e alguns travesseiros.

- Sai daqui, porra! – berrava Eurico.

- Punheteiro! – gritava a irmã, do outro quarto.

- Puta! – retrucava.

Era um entrave verbal por dia. Som alto. Gritaria. Bagunça. Ordens.

- Você que passou esse vestido? Que merda – Brigas! Portas batidas! Palavrões!

Basta! Dolores não aguentava mais!Estava mais magra, seus cabelos estavam caindo. A úlcera a atacava, as olheiras pintavam o rosto e as rugas rasgavam a pele. Ia pedir as contas no dia seguinte, na sexta feira.

Levantou-se da sua cama e apanhou a muda de roupas passadas. Caminhava no longo corredor que dava para o quarto de Dona Quitéria. Recebeu um solavanco, caindo no chão.

- Sai da frente, sua mula! – gritou Naiara, que corria vestida de roupão, os braços apertando os peitos, em direção à cozinha. Ao tentar levantar-se, outro solavanco. Dessa vez Eurico.

- Não vai levantar, não vai levantar, não vai levantaaar... – cantava o gordo, pulando e rindo sozinho, chutando as roupas caídas.

- Pare com isso, moleque! – gritou ao erguer-se – Você vai amassar tudo, retardado!

Eurico ignorou. Fixou-se sobre uma camiseta do pai e esfregou os pés.

- Pare!

Naiara voltou correndo da cozinha, irritada. Atropelou Dolores e trancou-se no banheiro.

Dolores levantou-se e agradeceu por não ser empurrada novamente por Eurico, que não estava mais lá. Juntou as roupas e jogou-as sobre a cama da patroa.

- Você que passou essas roupas? – perguntou Valmira, que surgira das paredes como só os fantasmas conseguem – Que merda – finalizou antes de desaparecer.

Dolores tremia. De raiva. O sangue pulsava nas veias com força, e a batida do coração atordoava sua cabeça, ecoando nos tímpanos como se alguém os estivesse marretando. Seus dentes batiam, rangiam. A impressão é que faltaria pouco para que quebrassem.

Sorrateira, ergueu-se. Caminhou vagarosa até o quarto de Naiara, sem saber o porquê. Reparou na zona. Viu revistas abertas. Apanhou uma.

Fazia tempo que não via um daqueles. Era grande, roliço, cabeçudo. Ergueu os olhos e aproximou a página da vista. Reparou nas outras revistas espalhadas, todas estampadas com figuras fálicas e veiudas. Caminhou até o banheiro e colou a orelha na porta.

Ouvia gemidos e gritinhos acompanhados de barulhos melosos e molhados. Bateu na porta.

- Naiara? – disse, com uma frieza estranha. Estranha e boa.

- Cai fora! – retrucou, rangendo os dentes.

Dolores caminhava para a cozinha. Batia a revista em forma de canudo na mão, cantarolando.

- Que merda de música – disse Valmira sentada no sofá.

Ignorou, entrando na sua área natural de serviço. Eurico estava lá, sentado em um banquinho, gordo como sempre.

- Quero cachorro quente!

- Tá bom. Eu faço – disse, serena. Estava leve.

- Ãh? – respondeu, como pego de surpresa.

- Eu disse que eu faço.

- Mas não tem...

- Tem sim... – respondeu sibilante – Tem sim... – não soube dizer se os chocalhos que ouvira foram realmente da televisão ligada na sala.

*

Ao trancar a porta da casa, olhou-a uma última vez. De fato era uma bela casa. Imponente, suntuosa. E agora maravilhosamente silenciosa.

Saiu de cabeça erguida, contente com o trabalho feito. Certamente ele fora bem efetuado. Principalmente o último.

- Não é fácil ser faxineira, não. Principalmente passar roupa – pensou alto, enquanto caminhava na calçada rumo ao ponto de ônibus. Ela tinha razão. Nenhum cirurgião no mundo seria capaz de deixar o rosto de Valmira tão liso.

2 comentários:

Carol Giacon disse...

Eu me identifiquei com o amibente de trabalho dela. Não as mesmas situações, as mesmas ações.
Queria eu ter tido a coragem que ela teve.

Muito bom mesmo, já sabe.

Ninha disse...

Ahahahaha adorei, Bi!

Eu adoro o jeito que vc escreve, te prende, dá mó vontade de saber o que vai acontecer no final!