quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Desequilíbrio

A primeira coisa que Vicente pensou ao pisar em São Paulo foi na sábia frase de sua mãe:
- Você vai passar fome.
Desembarcar na rodoviária do Tietê foi tão desagradável quanto empolgante: morar sozinho, na cidade grande, era o desafio de qualquer garoto do interior
O sonho de ser engenheiro o consumia desde pequeno, embora não soubesse que à atividade de construir, principalmente projetar casas com Lego para depois usufruir do prazer de destruí-las, dava-se tal nome. Sua habilidade com números era notável, principalmente a disciplina com que se comprometeu aos estudos para entrar na Politécnica de São Paulo. Ser rechaçado pela vontade da mãe, especialmente em virtude da distância obrigatória, não o fez recuar em algum momento. Entretanto, pisar na cidade grande com quase nada no bolso e ainda menos no estômago, obrigou Vicente a refletir, mesmo por poucos segundos, se havia tomado a decisão certa.
Não arranjou república, mas já tinha casa. Ou pelo menos, um teto. O pulgueiro em que morava era um verdadeiro cubículo. Seu apartamento no Edifício Central, na Praça Roosevelt, era tão pequeno que o quase nada que tinha já era muito: espelho no banheiro, mesa de boteco e um chuveiro gelado.
Com o tempo, seu corpo foi perdendo a delineação dos músculos. A magreza o atacava, pois sua dieta a base de miojo e lanches variados nas padarias paulistanas não chegava a ser extremamente nutritiva.
- Preciso de um emprego – disse certa vez ao sair do banho e examinar seu corpo nu no espelho: até seu rosto, outrora rechonchudo, cedeu lugar aos ossos polidos e evidentes. Estava com cara de cavalo.
Apanhou um jornal e abriu a parte dos classificados. Acompanhou com os olhos os pequenos quadrados riscando aquilo que não lhe agradava. Não estava em condições de recusar dinheiro, mas não havia nascido com o dom de ser servente de supermercado, tampouco animador de festas infantis. Não se achava engraçado.
Sorrateiro, como se seu olhar fosse chupado, pousou em algo interessante:
- El’Vatre? – repetiu em voz alta – O que será? – perguntou para o chão – Salário a partir de R$ 950. ...E é perto...
Parou com os devaneios e apanhou o telefone: ligou para o local e agendou uma entrevista para o dia seguinte.
- Bom dia, eu tenho uma entrevista com o Sr. Moreira – disse a uma secretária esquálida que atendia pelo nome de Rosana.
- É só aguardar. Sente-se, por favor.
A sala de espera conseguia ser menor que seu banheiro. O pano das poltronas parecia ter sido entregue às traças havia tempo, e cada pedaço da parede era embrulhado por três dedos de poeira.
Antes de perguntar a si mesmo aonde fora se meter, Rosana o avisou que o tal Moreira já o esperava na porta ao lado.
- Com licença – disse educadamente após abrir a porta.
- Olá. Por favor, fique a vontade – respondeu.
Walter Eusébio de Clara Moreira, ou apenas Sr. Moreira, tinha os olhos fundos acobertados por enorme par de óculos, e a barriga em formato de barril mal cabia entre o espaço da cadeira e a escrivaninha.
- Vamos falar de negócios – disse rude, puxando a cadeira para mais perto da mesa – O que você sabe fazer?
- Eu...ah...sou estudante de engenharia, comecei faz pouco tempo – respondeu – Sou do interior e estou a procura de algum emprego que possa me sustentar...
- Entendo – cortou o homem – Me responda...qual é o seu nome? – perguntou, apoiando o queixo gordo sobre a mão.
- Vicente...
- Vicente, é o seguinte – sua voz rasgada tinha bafo de charuto – gostei de você!
- Ah...é? Mas eu...
- Minha proposta é essa – disse empurrando um papel almaço virado de cabeça para baixo – Nossos dez segundos de conversa foram mais que suficientes e eu tenho certeza que você será capaz de efetuar tal atividade.
Vicente ouvia as palavras de Sr. Moreira prestando a mínima atenção necessária. Forçava os olhos para ler cada linha torta e apagada do papel que empunhava, não acreditando com o que se deparava.
- O senhor está falando sério? – respondeu incrédulo.
- Claro que estou. Tenho cara de homem quem brinca em serviço?
- Eu... – Vicente gaguejou – Por que acha que eu sou capaz de fazer...isso?! A gente mal conversou, você nem se preocupou em saber o meu nome direito e realmente acha que eu sou capaz...
- Você é capaz – respondeu Sr. Moreira encostando-se na poltrona, que rangeu – Eu sei disso. Eu vejo isso.
- Sério? Aonde? – retrucou desafiante.
- Nos seus olhos. São frios.
*
- Pois não?
- Cláudia Rorche? – perguntou Vicente do outro lado do muro de concreto coberto por unha de gato.
- Isso.
- Represento a El’Vatre – respondeu, mostrando um cartão.
- Sim, claro! Entre!
Vicente abriu a porta com cuidado. Fechou-a e, timidamente, atravessou o pequeno jardim de ladrilho, subindo a escadinha de tijolo e deparando-se frente a frente com a famosa Cláudia Rorche. Famosíssima Cláudia Rorche.
- Entre, fique a vontade.
- Obrigado – agradeceu, adentrando a pequena sala de estar.
Nunca se sentiu um bom vendedor. Admirava o bom uso da retórica e as artimanhas eloquentes que ela poderia gerar, embora nunca tenha se familiarizado com discursos convincentes de articuladores de palavras. A proposta de Sr. Moreira era audaciosa e, até certo ponto, ofensiva. Que procurasse um especialista! Todavia, não tinha porque reclamar. O dinheiro era ótimo e sua geladeira estava longe de ser farta.
Cláudia fechou a porta e mirou-lhe o olhar. De cima a baixo.
- Sente-se, por favor. Quer um copo de água?
- Adoraria – respondeu já sentado, colocando a pesada maleta que carregava ao seu lado no sofá. Viu a mulher se distanciar rumo à cozinha. Sob seu vestido de ceda branca quase transparente, Vicente pôde ver o rebolado da mulher que gingava a bunda sem calcinha de um lado a outro. Fora de seu alcance, Vicente colocou-se de pé e vidrou-se num espelho. Nem parecia ele mesmo: o cabelo impecavelmente penteado, o terno fino de risca de giz, camisa branca e gravata fina preta. Sua mãe estaria orgulhosa.
- Gostou?– perguntou Cláudia, surpreendendo Vicente.
- É um belo espelho – respondeu sem graça, apanhando o copo e bebericando a água aos poucos.
- Comprei em uma viagem à Índia – colocou-se ao lado de Vicente e olhou seu reflexo junto com o dele. Estavam os dois juntos, como se espiassem pela janela – O vendedor me garantiu que o espelho só reflete o que é bom o suficiente para ser refletido.
Cláudia deixou a frase solta no ar. Vicente passou a repará-la. A idade já deixara sua marca. A mulher era bem mais velha, mas não menos sensual. Seus cabelos loiros delineavam a fineza de seus traços, e seu rosto era ressaltado com os lábios fortemente pintados de vermelho. Ela se aproximou. Pelo outro lado do vidro, Vicente viu o peito coberto pela roupa fina e sentiu o cheiro forte que a pele exalava. Cheiro de mulher.
- Me diga – disse Cláudia num sussurro – O espelho mostra alguma coisa?
- Ah, mostra...
- E o que vê?
- Certamente... – as palavras saiam pausadas – o que há de melhor a ser mostrado.
De canto de olho, Vicente viu a mulher sorrir e afastar-se. Andou em direção ao sofá e parou frente a maleta.
- Quais são as novidades que fizeram o Moreira trazer rapaz tão charmoso a minha casa?
- Duvido que você já não saiba a resposta – ainda virado frente ao espelho, Vicente observava Cláudia mexer na maleta.
- Parece que o Moreira deixou você a par de tudo.
- De fato, estou bem informado – respondeu com um sorriso cínico.
- De todas as possibilidades? – perguntou desinibida passando a mão no pescoço, que deslizou até os seios soltos sob o robe. Pelo reflexo, Vicente a acompanhou. Seus dedos tocaram na gravata que, pouco a pouco, perdeu a força de seu laço e cedeu à queda.
- Sim – ainda pôde ver uma macha branca pendurada no corpo da mulher ao virar-se rapidamente. Parada. Nua – Principalmente essa.
Andou decidido, passada firme. Olho a olho. Escancarado, o corpo nu alastrava a luz do sol que o enfeitiçava. Parou o rosto a centímetros do pescoço da mulher e só percebeu o caminho que tomara ao notar seus lábios presos aos dela.
Deixou suas mãos guiarem a visão do instinto proibido. Mesmo com os olhos fechados, lembrava os alertas de Moreira sobre a perdição que o atacava como cenas exaustivamente assistidas.
Maligna. Bruxa. Feiticeira. Não se entregue a perdição. Não a deixe testá-lo.
A voz aveludada de bafo de café competia com o jogo de pernas e braços, que digladiavam. Ignorou ao perceber a dança que suas línguas ensaiavam, não apenas boca a boca, mas principalmente boca a corpo. Chupava-lhe os seios, e deixava ser sugado por lábios completamente enfeitiçados. O perfume. O toque. O charme.
Faça seu trabalho. Arrepio. Não se esqueça do seu trabalho. Loucura. Valorize sua frieza. Desequilíbrio.
Jogados ao chão, sua nudez montava sobre o corpo de Cláudia Rorche, que gemia em seus ouvidos e mordia-lhe as orelhas.
Você sabe qual é o jogo. Não se encante com ‘olás’. Deixe que suas mãos façam o trabalho.
Ah, e faziam!  Seguravam com força, faziam o impossível!
- Você...você ainda...ainda não... – dizia Cláudia entre um gemido e outro – disse...seu...nome...
- Pode me chamar de...Moreira....
Agarrou o robe jogado ao chão e evolveu a mulher, laçando-o entre o pescoço como quem teme a fuga da caça. Num laço, puxou-o com força. Jogou as pernas contra o tronco de Cláudia, sentando sobre seus seios. 
Com um joelho sobre cada braço, Vicente ignorou os solavancos desesperados dados pela vítima que, por meio do olhar esbugalhado, aclamava por socorro. O rosto arroxeado suplicava por misericórdia ou ao menos uma explicação do porquê de tudo aquilo.
- Com certeza...! – Vicente fazia cada vez mais força – Você sabe – Cláudia balançava o corpo freneticamente – por mais que eu não saiba porque estou a matando! – apertou o nó como um ultimato. Ouviu a golfada de Cláudia e relaxou seu corpo nu enrijecido. Não havia mais contra quem lutar.
Jogou-se no chão, deitado ao lado do corpo. Olhou o teto por poucos minutos até decidir se levantar.
Enquanto se vestia, Vicente deu uma última olhada no corpo estirado e chegou a pensar nos motivos que levaram Moreira a contratar uma pessoa para passar a limpo a tal da Cláudia Rorche. Parou de frente ao espelho para arrumar a gravata, reparou nos próprios olhos e, sem seguida, no defunto da sala de estar.
Chegou a questionar como Moreira havia percebido a frieza de seus olhos mas dispersou com o ronco de sua barriga. Deu última olhada e despediu-se de Cláudia Rorche sem arrepender-se tanto. Antes ela sem vida que seu prato sem comida.

3 comentários:

Ninha disse...

Puta que pariu, adoreeeeeeeeeei!!! Quando vc vai ser o roteirista das minhas peças de teatro??? :D

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Vini,
Ficou muitooo show este texto, parabéns de verdade! Adorei... que venham muitos maisss!